Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 105/2017
PROPONENTE : Ver. Miguel Crizel e Ver. Alex Medeiros
     
PARECER : Nº 329/2017
REQUERENTE : Comissão de Constituição, Justiça e Redação

"Institui o dia da Marcha para Jesus "

1. Relatório:

Os Vereadores Miguel Crizel e Alex Medeiros apresentaram o Projeto de Lei nº 105/17 à Câmara Municipal, objetivando instituir, no Município de Guaíba, o “Dia da Marcha para Jesus”, a ser realizado, anualmente, 60 (sessenta) dias depois da Páscoa e devendo ser incluído no calendário oficial de eventos. Encaminhado à Comissão de Justiça e Redação, o projeto foi remetido a esta Procuradoria, para parecer. 

2. Parecer:

Quanto à competência, não há qualquer óbice à proposta. Conforme dispõe o artigo 30, I, da Constituição Federal de 1988, “Compete aos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local.” No mesmo sentido, o artigo 6º, II, da Lei Orgânica do Município de Guaíba refere que “Ao Município compete prover a tudo quanto diga respeito ao seu peculiar interesse e ao bem estar de sua população, cabendo-lhe privativamente, dentre outras, as seguintes atribuições: legislar sobre assunto de interesse local.”

O Projeto de Lei nº 105/2017 se insere, efetivamente, na definição de interesse local, na medida em que institui, no Município de Guaíba, o “Dia da Marcha para Jesus”. A fixação de datas comemorativas em âmbito municipal atende ao interesse local porque busca homenagear setores, grupos ou atividades relevantes para a comunidade, incentivando o debate e a reflexão.

O IGAM, na orientação técnica nº 25.947/2017, referiu que a proposta afronta o princípio da laicidade da República Federativa do Brasil, uma vez que, por imposição do artigo 19 da Constituição Federal de 1988, é vedado ao Estado praticar atos de fundo religioso, promovendo e incentivando determinados cultos em detrimento dos demais, exceto quando tais ações forem justificáveis sob o ponto de vista cultural.

Ocorre que não se pode confundir os conceitos de laicidade e laicismo. O primeiro é a característica de determinados Estados adotarem uma posição de neutralidade em relação às manifestações religiosas, ou seja, embora estejam proibidos de subvencionar financeiramente os atos religiosos, devem respeitá-los em função da liberdade de crença. O segundo conceito, mais radical, legitima posturas de intolerância pelo Estado, que vê as manifestações religiosas de forma negativa, proibindo-as completamente.

A República Federativa do Brasil, alinhada à teoria dos direitos fundamentais de primeira dimensão, é neutra em relação aos atos religiosos, não adotando religião oficial, porém não vedando que se realizem essas manifestações. Resumidamente, nos termos do artigo 5º, VI, da CF, “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”

Portanto, a laicidade do Estado brasileiro não se confunde com laicismo, não havendo qualquer óbice à realização de atos religiosos. O limite da garantia da liberdade religiosa pelo Estado encontra previsão no artigo 19, I, da CF, o qual estabelece ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.” Veda-se, assim, a aplicação de recursos públicos para a promoção de atos religiosos, ressalvado o caso de colaboração de interesse público, mas não há proibição a que se institua mera data comemorativa em âmbito local, desde que não sejam impostos encargos ao Poder Público, que adota posição inerte quanto aos atos religiosos.

A laicidade da República Federativa do Brasil – que, como visto, nada tem a ver com intolerância religiosa – convive harmoniosamente com outros dispositivos constitucionais que se referem à religião. Inicialmente, o preâmbulo invoca a proteção de Deus para a promulgação da Constituição Federal. O artigo 5º, nos incisos VI, VII e VIII, por sua vez, assegura a liberdade de crença, a prestação de assistência religiosa nas entidades de internação coletiva e a vedação à privação de direitos por motivo de crença religiosa.

O artigo 143, nos § 1º e § 2º, estabelece isenção do serviço militar obrigatório em tempo de paz aos eclesiásticos e a obrigatoriedade de atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, alegarem “imperativo de consciência”, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política.

Além disso, o artigo 150, VI, “b”, como forma de garantir a liberdade de crença, assegurou imunidade tributária de impostos aos templos de qualquer culto. O artigo 210, por sua vez, prevê o ensino religioso como disciplina de matrícula facultativa e o artigo 226, § 2º, afirma a produção de efeitos civis ao casamento religioso.

Deve-se lembrar, ainda, que o artigo 23, III, da CF/88 prevê a competência material comum entre todos os entes federados para “proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos.”

É inegável que a formação cultural do povo brasileiro e de praticamente todas as comunidades em âmbito internacional sofreu forte influência religiosa, tratando-se de um fruto do processo histórico de constituição dos povos. Vejo que, além do caráter religioso, a proposta aqui analisada tem um cunho marcadamente cultural, por dizer respeito a um sujeito que, sem dúvidas, integra a identidade do povo brasileiro, enquanto nação predominantemente católica. É com base em tais fundamentos que já foram promulgadas, em âmbito nacional, as Leis nº 11.532/07 e 12.025/09, que instituíram, respectivamente, o “Dia Nacional do Frei Sant’Anna Galvão” e o “Dia Nacional da Marcha para Jesus”, figuras que, embora possuam um fundo religioso, revelam-se muito mais como protagonistas de manifestações culturais, já que referenciadas como “datas comemorativas”.

Desse modo, não vejo obstáculos para que sejam reconhecidas, como datas comemorativas, manifestações ou objetos que, apesar de possuírem fundo religioso, façam parte da identidade cultural e do processo de formação histórica do povo brasileiro, independentemente da religião a que se refiram, desde que não haja subvenção desses atos pelo Estado, considerando a vedação do artigo 19, I, da CF/88.

No entanto, quanto à inclusão do “Dia da Marcha para Jesus” no calendário oficial de eventos do Município de Guaíba, há reserva de iniciativa ao Chefe do Executivo para deflagrar o processo legislativo. Isso porque o calendário oficial de eventos municipais é instituído por meio de projeto de lei de iniciativa do Prefeito, por se tratar de matéria atinente à organização administrativa, nos exatos termos do artigo 61, § 1º, II, “b”, da Constituição Federal, aplicável por simetria aos Estados e Municípios, por ser norma constitucional de reprodução obrigatória. No mesmo sentido, o artigo 52, VI, da Lei Orgânica Municipal refere competir privativamente ao Prefeito “dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei.”

Em Guaíba, o calendário oficial de eventos é reavaliado anualmente, tendo sido aprovado, neste ano, através da Lei Municipal nº 3.487, de 06 de janeiro de 2017, a qual, como já foi dito, é de iniciativa do Prefeito enquanto responsável pelas questões relacionadas à organização administrativa. O anexo único à Lei nº 3.487/17 detalha, mês a mês, os eventos a serem realizados durante o ano pelo Município, cabendo a gestão e a ordenação ao Poder Executivo.

Portanto, tratando-se de matéria relacionada à organização administrativa do Município de Guaíba, que despende recursos, pessoal e força de trabalho para a realização de eventos, convém esclarecer que a iniciativa de projeto de lei determinando a inclusão de certa celebração no calendário oficial de eventos é do Chefe do Executivo, embora, nesse caso em específico, haja vedação constitucional à subvenção do evento pelo Município. Nada impede, entretanto, iniciativa parlamentar no sentido de instituir a celebração em si.

Nesse sentido, destaca-se o posicionamento da jurisprudência:

AGRAVO REGIMENTAL. DECISÃO QUE INDEFERIU O PEDIDO LIMINAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 6.019/2013, QUE INCLUI NO CALENDÁRIO OFICIAL DE EVENTOS DO MUNICÍPIO DE PELOTAS AS FESTAS DE IEMANJÁ E NOSSA SENHORA DOS NAVEGANTES E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS. VÍCIO DE ORIGEM. MATÉRIA DE INICIATIVA PRIVATIVA DO PREFEITO. AUMENTO DE DESPESA. VÍCIO MATERIAL. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. CONCESSÃO DA LIMINAR PARA SUSPENDER OS EFEITOS DA LEI IMPUGNADA. POR MAIORIA, DERAM PROVIMENTO AO AGRAVO REGIMENTAL. (Agravo Regimental Nº 70057704108, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francisco José Moesch, Julgado em 26/05/2014).

Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei nº 1.043, de 9 de outubro de 2012, do Município de Bertioga. Norma que institui a 'Semana Cultural do Artista Especial' e dá outras providências. Ato normativo que não se limita à fixação de mera data comemorativa, mas envolve também atos de gestão administrativa. Ocorrência de vício de iniciativa. Violação ao princípio da separação dos poderes. Inconstitucionalidade da lei municipal. Procedência da Ação (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 0076081-39.2013.8.26.0000, Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, m. v., Rel. Des. Kioitsi Chicuta, em 21/8/13).

Para tornar viável o Projeto de Lei nº 105/2017, que atende ao interesse local e promove o reconhecimento de direitos relevantes, como a cultura (artigo 215, CF) e a liberdade religiosa (artigo 5º, VI, CF), sugere-se que seja retirado da redação do artigo 1º o trecho que determina a inclusão da data comemorativa no calendário oficial de eventos, podendo, inclusive, seguir os termos da Lei Federal nº 12.025/09: “É instituído o Dia da Marcha para Jesus, a ser realizado, anualmente, sessenta dias após a Páscoa.” 

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria opina que a viabilidade jurídica do Projeto de Lei nº 105/2017 está condicionada à revisão do artigo 1º, para deixar de incluir a data comemorativa no calendário oficial de eventos do Município de Guaíba, não havendo óbice legal, por outro lado, quanto à instituição da comemoração em si, nos termos dos fundamentos já expostos.

É o parecer.

Guaíba, 25 de outubro de 2017.

GUSTAVO DOBLER

Procurador Jurídico



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