Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 078/2017
PROPONENTE : Ver.ª Claudinha Jardim, Ver. Bento do Bem e Ver. Florindo Motorista
     
PARECER : Nº 328/2017
REQUERENTE : Comissão de Constituição, Justiça e Redação

"Cria no âmbito do Município de Guaíba o banco de materiais ortopédicos, próteses oculares e auditivas"

1. Relatório:

Os Vereadores Claudinha Jardim, Bento e Florindo Motorista apresentaram o Projeto de Lei nº 078/2017 à Câmara Municipal, objetivando criar o banco de materiais ortopédicos, próteses oculares e auditivas no Município de Guaíba. Encaminhado à Comissão de Justiça e Redação, o projeto foi remetido a esta Procuradoria, para parecer jurídico. 

2. Parecer:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

O banco de materiais ortopédicos e próteses oculares e auditivas que se pretende instituir no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque, além de veicular matéria de competência material do Município (artigo 23, II, CF), não atrelada às competências legislativas privativas da União (CF, artigo 22), o Projeto de Lei nº 078/2017 estabelece a facilitação do acesso à saúde pelas pessoas de baixa renda, direito que é alinhado ao espírito democrático e garantista da Constituição.

Quanto à matéria de fundo, também não há qualquer óbice à proposta. Convém lembrar que o objetivo primordial do Projeto de Lei nº 078/2017 é promover a doação de materiais ortopédicos e próteses oculares e auditivas às pessoas que não possuem condições financeiras para adquiri-los. A medida pretendida, quanto à matéria, vem ao encontro de todo o arcabouço jurídico relativo à matéria.

Ocorre que o Projeto de Lei nº 078/2017, embora louvável o seu objeto, contém vício de iniciativa. As hipóteses de iniciativa privativa do Poder Executivo, que limitam o poder de iniciativa dos vereadores, estão expressamente previstas na Constituição Federal, aplicadas por simetria aos Estados e Municípios. Dispõe o artigo 61, § 1º, da CF:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;

e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observadoo disposto no art. 84, VI;  (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

Para os fins do direito municipal, mais relevante ainda é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme prevê o artigo 125, § 2º, da CF e artigo 95, XII, alínea “d”, da CE. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Vale destacar que o mero fato de gerar novas despesas ao Poder Executivo não obstaculiza a tramitação de projetos de lei, desde que haja previsão do programa na lei orçamentária anual, na forma do artigo 154, I, da CE/RS e do artigo 167, I, da CF/88. Inclusive, como bem referiu o IGAM na orientação técnica nº 23.659/2017, o Supremo Tribunal Federal já pacificou o entendimento de que “Não usurpa a competência privativa do chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração Pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos.” (ARE nº 878.911/RJ, Relator: Min. Gilmar Mendes, publicado em 11/10/2016).

Sucede-se que, muito além de apenas criar novas despesas ao Executivo, o Projeto de Lei nº 078/2017 objetiva a criação de uma nova atribuição permanente para a Secretaria de Saúde, órgão da Administração Pública, que consiste no recebimento de doações de materiais ortopédicos e próteses oculares e auditivas, sua guarda e posterior empréstimo a quem necessite, através de um banco, o que interfere na estruturação dos órgãos públicos.

Destarte, apesar de ser honrosa sob o ponto de vista material, a proposta não poderia ter sido apresentada por membro do Poder Legislativo, uma vez que a iniciativa para projetos que criem ou estruturem órgãos da Administração Pública, ou que lhe atribuam obrigações até então inexistentes, compete apenas ao Chefe do Executivo, enquanto responsável pela organização administrativa.

Nesse sentido, a jurisprudência do TJRS:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. MUNICÍPIO DE PELOTAS. LEI MUNICIPAL DETERMINANDO A OBRIGAÇÃO A CRIAÇÃO DE SERVIÇO DE RECOLHIMENTO GRATUITO DE MATERIAIS EM DESUSO. VÍCIO DE INICIATIVA. INTERFERÊNCIA NA ORGANIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ARTIGOS 8º, 60, II, D, 82, III E VII, E 154, I E II, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. CRIAÇÃO DE DESPESAS SEM PREVISÃO DE DOTAÇÃO ORÇAMENTÁRIA SUFICIENTE. INCONSTITUCIONALIDADE CARACTERIZADA. Reconhecida a inconstitucionalidade de Lei Municipal originada da Câmara Municipal de Vereadores determinando a criação de serviço de recolhimento gratuito de materiais em desuso (móveis, eletrodomésticos, etc.), uma vez que é de competência privativa do Prefeito Municipal a criação de leis que disponham sobre a estruturação da Administração Pública e as atribuições de seus órgãos, nos termos dos artigos 60, II, d e 82, III e VII, da Constituição Estadual, os quais reproduzem normas contidas da Constituição Federal. Ofensa também caracterizada em relação ao artigo 154, I e II, da Constituição Estadual, porquanto a implementação do disposto na norma impugnada implica em evidente aumento de gasto por parte da Administração sem que, contudo, haja a respectiva previsão orçamentária. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70062437777, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Iris Helena Medeiros... Nogueira, Julgado em 06/04/2015).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N. 4.273/2015, DO MUNICÍPIO DE CANGUÇU, QUE INSTITUI O BANCO DE REGISTRO DE DOADORES DE SANGUE. CRIAÇÃO DE ATRIBUIÇÕES À SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE. VÍCIO DE INICIATIVA CONFIGURADO. MATÉRIA SOBRE A QUAL COMPETE AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO LEGISLAR PRIVATIVAMENTE. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES. INCONSTITUCIONALIDADE PROCLAMADA. Padece de inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, lei municipal proposta pelo Poder Legislativo que, ao instituir banco de registro de doadores de sangue, cria atribuições à Secretaria Municipal de Saúde, porquanto são de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo as leis que disponham sobre criação, estruturação e atribuições de órgãos da Administração Pública (art. 60, inc. II, alínea "d", da Constituição Estadual). Por conseguinte, também resta caracterizada ofensa ao princípio da separação e independência dos Poderes no âmbito municipal, consagrado nos arts. 8º, caput, e 10 da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70068415397, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 17/10/2016).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N.º 3.032/2010 DO MUNICÍPIO DE GRAVATAÍ/RS. CRIAÇÃO DE BANCO DE MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO, MÓVEIS E UTENSÍLIOS DOMÉSTICOS. MATÉRIA ATINENTE AO FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL. PROJETO APRESENTADO POR VEREADOR. VÍCIO FORMAL DE INICIATIVA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SIMETRIA. Sobre o processo legislativo na esfera jurídica da União, o artigo 84, inciso VI, letra "a" da Constituição Federal atribui competência privativa ao Presidente da República, para dispor sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Por simetria, a regra se aplica aos Estados e aos Municípios. Assim, por tratar de matéria atinente ao funcionamento da administração municipal - criação de banco de materiais de construção, móveis, utensílios domésticos no âmbito do Município de Gravataí - e por ter sido apresentada por iniciativa do Poder Legislativo, padece de vício formal a Lei nº3.032/2010, do Município de Gravataí/RS. AÇÃO PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70040358459, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Genaro José Baroni Borges, Julgado em 23/05/2011).

Assim, embora seja admirável sob o ponto de vista material, o Projeto de Lei nº 078/2017 contém vício de iniciativa, por dispor sobre as atribuições de órgão público municipal, matéria cuja iniciativa é reservada ao Chefe do Executivo, nos termos do artigo 61, § 1º, II, “b”, e “e”, da CF e do artigo 60, II, “d”, da CE/RS.

Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no artigo 114 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba, para que, pela via política, o Prefeito apresente o mesmo projeto ao Legislativo, afastando, assim, a ocorrência do vício de iniciativa. 

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria opina pela inviabilidade jurídica do Projeto de Lei nº 078/2017, pela ocorrência de vício de iniciativa, nada impedindo, contudo, que seja remetido ao Executivo sob a forma de indicação (artigo 114 do RI).

Guaíba, 27 de outubro de 2017.

GUSTAVO DOBLER

Procurador Jurídico



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