Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 065/2017
PROPONENTE : Ver.ª Claudinha Jardim
     
PARECER : Nº 303/2017
REQUERENTE : Comissão de Constituição, Justiça e Redação

"Dispõe sobre a presença de intérprete de Língua Brasileira de Sinais em eventos oficiais promovidos pelos órgãos públicos municipais"

1. Relatório:

A Vereadora Claudinha Jardim apresentou o Projeto de Lei nº 065/2017 à Câmara Municipal, objetivando obrigar os órgãos públicos municipais, quando realizarem eventos oficiais, a garantir a presença de um intérprete da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Encaminhado à Comissão de Justiça e Redação, o projeto foi remetido a esta Procuradoria, para parecer jurídico. 

2. Parecer:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A obrigação que se pretende instituir para os órgãos da Administração Pública se insere na definição de interesse local. Isso porque, além de veicular matéria de competência material do Município (artigo 23, II, CF), não atrelada às competências legislativas privativas da União (CF, art. 22), o Projeto de Lei nº 065/2017 estabelece a facilitação do acesso à informação pelas pessoas portadoras de deficiência, direito que também é alinhado ao espírito democrático e garantista da Constituição.

Quanto à matéria de fundo, também não há qualquer óbice à proposta. Convém lembrar que o objetivo primordial do Projeto de Lei nº 065/2017 é promover a inclusão das pessoas portadoras de deficiência, mediante a garantia de acesso igualitário aos meios de informação e de participação nos eventos promovidos por órgãos públicos municipais. A medida pretendida, quanto à matéria, vem ao encontro de todo o arcabouço jurídico relacionado à cultura, ao acesso à informação e à participação democrática.

Ocorre que o Projeto de Lei nº 065/2017, embora louvável no objetivo, contém vício de iniciativa. As hipóteses de iniciativa privativa do Poder Executivo, que limitam o poder de iniciativa dos vereadores, estão expressamente previstas na Constituição Federal, aplicadas por simetria aos Estados e Municípios. Dispõe o artigo 61, § 1º, da CF:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;

e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observadoo disposto no art. 84, VI;  (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

Para os fins do direito municipal, mais relevante ainda é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme prevê o artigo 125, § 2º, da CF e artigo 95, XII, alínea “d”, da CE. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

O Projeto de Lei nº 065/2017 busca, acima de tudo, a criação de um dever específico ao Poder Público, consistente na garantia da atuação de um intérprete de LIBRAS em todos os eventos oficiais de órgãos públicos municipais, matéria que diz respeito à estruturação dos órgãos da administração pública, que deverão contratar os profissionais capacitados para a interpretação, seja através de licitação para a obtenção de serviços, seja por criação de vaga a ser preenchida por concurso público.

Apesar de ser honrosa sob o ponto de vista material, a proposta não poderia ter sido apresentada por membro do Poder Legislativo, uma vez que a iniciativa para projetos que determinem a estruturação de órgãos da Administração Pública, ou que lhe atribuam encargos que não apenas detalhem a execução de atribuições já existentes, compete apenas ao Chefe do Executivo, enquanto responsável pela organização administrativa.

Vale destacar que o mero fato de gerar novas despesas ao Poder Executivo não obstaculiza a tramitação de projetos de lei. O importante é que, nos projetos de lei que gerem aumento de despesa pública, seja demonstrada a prévia dotação orçamentária para o programa, mediante a indicação das respectivas fontes de custeio, conforme determinam os artigos 154, I, da CE/RS e 167, I, da CF/88, para que não haja violação das restritas regras que disciplinam a responsabilidade fiscal (LC nº 101/00).

Sucede-se que, além de referir-se à matéria de estruturação dos órgãos públicos, não houve demonstração, no projeto de lei, da prévia dotação orçamentária e das fontes de custeio das despesas públicas, razões pelas quais a proposta se torna inviável, muito embora seja honroso o seu objeto. Nesses termos, vale destacar a ementa do parecer elaborado pelo Ministério Público de São Paulo na ADI nº 2002688-13.2014.8.26.0000:

Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 11.412, de 03 de dezembro de 2013, do Município de São José do Rio Preto. Lei de iniciativa parlamentar impondo a participação de intérprete da Língua Brasileira de Sinais (libras) em todos os eventos públicos realizados no âmbito municipal. Parametricidade no controle de constitucionalidade de norma municipal. [...] 3. Encontra-se na reserva da administração a imposição de intérprete de Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) em eventos públicos oficiais realizados no Município, havendo no caso violação ao princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 1; 47, II e XIV; e 144 da Constituição do Estado). 4. A ausência de previsão na lei de fonte de custeio para cobertura de novos gastos públicos ofende o texto constitucional (arts. 25 e 176, I, CE). Procedência do pedido.

No Município de Porto Alegre, projeto similar foi apresentado à Câmara de Vereadores, para tornar obrigatória a presença de tradutor e intérprete da Língua Brasileira de Sinais em todos os eventos realizados pelo Município, de modo a assegurar a interpretação e a tradução integral. Embora a proposta tenha sido aprovada na Comissão de Constituição e Justiça, foi rejeitada, em 11 de agosto de 2017, na Comissão de Economia, Finanças, Orçamento e do MERCOSUL, sob os seguintes fundamentos:

Cabe a esta Comissão o dever de analisar as propostas aqui trazidas sob o prisma orçamentário. Não há dúvidas quanto ao mérito do projeto no que diz respeito à inclusão dos deficientes auditivos e na ampliação da comunicação entre o Município de Porto Alegre e seus cidadãos. Ressalte-se que em eventos de grande porte realizados pelo Município (Fórum Social Mundial, Assembleias do Orçamento Participativo, palestras e seminários, entre outros), a presença de intérprete de libras já se faz tradicional e corriqueira.

Entretanto, obrigar o Executivo a ter este tipo de serviço em todos os eventos, inclusive os de caráter protocolar e interno, implicaria em um custo ao erário que não conseguimos mensurar, seja pela contratação de profissional qualificado para o exercício da tradução ou para realização de concurso público visando a formação de quadro que exerça esta função.

Considerando que não há delimitação do porte dos eventos abrangidos pelo referido projeto e nem dos custos inerentes à sua implementação, acreditamos tornar-se inviável avaliar o seu impacto no orçamento municipal e, neste sentido, no que tange a análise desta Comissão, concluímos pela rejeição do Projeto e da Emenda nº 01.

Por fim, cabe trazer à tona julgado do TJRS em que se demonstra a iniciativa privativa do Chefe do Executivo para projetos de lei que disponham sobre a estruturação da Administração Pública e a atribuição de seus órgãos, bem como a necessidade de comprovação da prévia dotação orçamentária nas propostas que impliquem geração de despesas:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. MUNICÍPIO DE PELOTAS. LEI MUNICIPAL DETERMINANDO A OBRIGAÇÃO A CRIAÇÃO DE SERVIÇO DE RECOLHIMENTO GRATUITO DE MATERIAIS EM DESUSO. VÍCIO DE INICIATIVA. INTERFERÊNCIA NA ORGANIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ARTIGOS 8º, 60, II, D, 82, III E VII, E 154, I E II, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. CRIAÇÃO DE DESPESAS SEM PREVISÃO DE DOTAÇÃO ORÇAMENTÁRIA SUFICIENTE. INCONSTITUCIONALIDADE CARACTERIZADA. Reconhecida a inconstitucionalidade de Lei Municipal originada da Câmara Municipal de Vereadores determinando a criação de serviço de recolhimento gratuito de materiais em desuso (móveis, eletrodomésticos, etc.), uma vez que é de competência privativa do Prefeito Municipal a criação de leis que disponham sobre a estruturação da Administração Pública e as atribuições de seus órgãos, nos termos dos artigos 60, II, d e 82, III e VII, da Constituição Estadual, os quais reproduzem normas contidas da Constituição Federal. Ofensa também caracterizada em relação ao artigo 154, I e II, da Constituição Estadual, porquanto a implementação do disposto na norma impugnada implica em evidente aumento de gasto por parte da Administração sem que, contudo, haja a respectiva previsão orçamentária. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70062437777, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Iris Helena Medeiros... Nogueira, Julgado em 06/04/2015).

Assim, embora seja admirável sob o ponto de vista material, o Projeto de Lei nº 065/2017 contém vício de iniciativa, por dispor sobre a estruturação dos órgãos públicos e sobre nova atribuição que vai além da mera regulamentação ou detalhamento de tarefas já determinadas a essas unidades administrativas.

Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no artigo 114 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba, para que, pela via política, o Prefeito apresente o mesmo projeto ao Legislativo, afastando, assim, a ocorrência do vício de iniciativa. Também é possível que seja apresentado um substitutivo, pela proponente, para determinar a obrigação de manter intérprete de LIBRAS em certos eventos privados, especialmente os que, por sua natureza, se baseiem em comunicação contínua (seminários, congressos, palestras, simpósios) e/ou aqueles que comprovadamente tenham a presença de pessoas surdas. Trata-se de alternativa que mantém os propósitos do projeto, não ingressa na matéria de estruturação e atribuições dos órgãos públicos e dispensa dotação orçamentária dos cofres públicos. 

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria opina pela inviabilidade jurídica do Projeto de Lei nº 065/2017, pela ocorrência de vício de iniciativa e pela falta de indicação das fontes de custeio das despesas, nada impedindo, contudo, que seja remetido ao Executivo sob a forma de indicação (artigo 114 do RI) ou que seja apresentado substitutivo, pela proponente, nos moldes recomendados.

Guaíba, 18 de outubro de 2017.

GUSTAVO DOBLER

Procurador Jurídico



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