Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 079/2017
PROPONENTE : Ver. Nelson do Mercado, Ver. Alex Medeiros, Ver. Florindo Motorista e Ver. Bento do Bem
     
PARECER : Nº 272/2017
REQUERENTE : Comissão de Constituição, Justiça e Redação

"Acrescenta os Incisos XXIII, XXIV e XXV ao Artigo 26 da Lei Municipal Nº 1.027/1999, que trata do Código de Posturas do Município de Guaíba"

1. Relatório:

Os Vereadores Nelson do Mercado, Alex Medeiros, Florindo Motorista, Bento, Manoel Eletricista e Arilene Pereira apresentaram o Projeto de Lei nº 079/2017 à Câmara Municipal, em que buscam incluir os incisos XXIII, XXIV e XXV ao artigo 26 da Lei Municipal nº 1.027/90 (Código de Posturas de Guaíba). Encaminhado à Comissão de Justiça e Redação, o projeto de lei foi remetido a esta Procuradoria, para parecer.

2. Parecer:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação dos municípios, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal, é tratada no artigo 30 da Constituição Federal, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

O projeto que se pretende aprovar se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque o Projeto de Lei nº 079/2017 disciplina o exercício do poder de polícia administrativa em relação ao consumo de bebidas alcoólicas nos limites do município, atividade inerente à Administração Pública Municipal e fundamentada no artigo 23 da CF e no artigo 13, I, da CE/RS, nos seguintes termos:

Art. 13.  É competência do Município, além da prevista na Constituição Federal e ressalvada a do Estado:

I - exercer o poder de polícia administrativa nas matérias de interesse local, tais como proteção à saúde, aí incluídas a vigilância e a fiscalização sanitárias, e proteção ao meio-ambiente, ao sossego, à higiene e à funcionalidade, bem como dispor sobre as penalidades por infração às leis e regulamentos locais;

Nesse sentido, colaciona-se a jurisprudência do TJPR em caso similar ao que se apresenta no Projeto de Lei nº 079/2017:

O primeiro vício alegado pela autora é o da inconstitucionalidade formal (...) além de destacar legislação federal e estadual que não restringe a comercialização e consumo de bebidas alcoólicas, nas proximidades das instituições de ensino superior. Em que pese a retórica da autora, certo é que a norma municipal não se refere à produção e a consumo, razão pela qual não afronta a competência da União e do Estado, considerando-se que se insere no Poder de Polícia da Administração Pública, ao disciplinar restrição espacial na comercialização de bebidas alcoólicas ­ ou seja, vedação à comercialização de bebidas alcoólicas, a uma distância de 150 metros dos estabelecimentos de ensino superior, cuja competência está prevista no art. 30, inciso I, da Constituição Federal, por ser assunto de interesse local, visto que é o ente público que concede ou não alvará de funcionamento de estabelecimentos comerciais, no âmbito de seu território (TJPR - Órgão Especial - AI nº 641.399-0 - Rel. Des. Mário Helton Jorge - Unânime - J. 18.03.2011).

No que diz respeito à iniciativa para deflagrar o processo legislativo, as hipóteses de iniciativa privativa do Poder Executivo, que poderiam limitar o poder de iniciativa dos vereadores, estão expressamente previstas, inicialmente, na Constituição Federal. Dispõe o artigo 61, § 1º, da CF:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;

e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observadoo disposto no art. 84, VI;  (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

Para os fins do direito municipal, mais relevante ainda é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme prevê o artigo 125, § 2º, da CF e artigo 95, XII, alínea “d”, da CE. Apenas excepcionalmente o parâmetro da constitucionalidade será a Constituição Federal, desde que se trate de normas constitucionais de reprodução obrigatória (STF, RE nº 650.898/RS). Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

No âmbito municipal, a Lei Orgânica estabelece as competências legislativas privativas do Prefeito no artigo 119, nos seguintes termos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos-de-lei que:

I - disponham sob matéria financeira;

II - criem cargos, funções ou empregos públicos, fixem ou alterem vencimentos e vantagens dos servidores públicos;

III - disponham sobre matéria tributária, orçamentos, aberturas de créditos, concessão de subvenções, de auxílios ou que, de qualquer forma, autorizem, criem ou aumentem a despesa pública.

Quanto ao conteúdo material da norma, há que se fazer algumas considerações. O Projeto de Lei nº 079/2017 objetiva, sobretudo, proibir o consumo de bebidas alcoólicas em todo e qualquer local público, independente de sua natureza, à exceção de eventos realizados com a respectiva autorização para consumo de bebidas e de bares, quiosques, lanchonetes, restaurantes e casas de eventos, com fundamento nos direitos à segurança, à saúde, à tranquilidade e ao sossego público. Por outro lado, a medida aqui pretendida, do modo como foi proposta, pode ser capaz de interferir no direito à liberdade individual dos moradores de Guaíba, que não poderão consumir bebidas alcoólicas em qualquer local público, ainda que em pequena quantidade.

Percebe-se a ocorrência de um típico caso de colisão de direitos fundamentais. Adotando-se as teorias de Robert Alexy e de Dworkin, o confronto entre princípios, diferentemente das regras do direito positivo, resolve-se por meio da ponderação, a partir da qual o intérprete deve buscar, para ambos, a maior concretização possível. Ou seja, enquanto o conflito entre as regras se resolve pelo sistema do “tudo ou nada” (all or nothing), o conflito entre princípios se encerra na análise da proporcionalidade das medidas que se objetivam implementar, de acordo com três parâmetros: necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.

Tratando-se de conflito entre direitos fundamentais, portanto, não há espaço para análises no campo da validade, isto é, sobre um direito que invalide o outro. Todos os princípios normativos – e aqui se incluem os direitos fundamentais – possuem inquestionável validade no cenário constitucional e representam interesses socialmente relevantes.

A esse respeito, vale registrar as lições da doutrina:

No Brasil não é diferente. A doutrina de Robert Alexy é referida em inúmeros acórdãos do Supremo Tribunal Federal e, com base nela, têm-se entendido o caráter principiológico das normas que conferem direitos fundamentais, o que impõe sua concretização na maior medida possível; ao contrário das normas que atribuem direitos subjetivos: as conhecidas regras do direito positivo que, segundo a teoria de Alexy, não admitem ponderação, devendo ser aplicadas de forma absoluta (como afirma Ronald Dworkin, numa condição de tudo ou nada).[1]

[1] Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rdgv/v10n2/1808-2432-rdgv-10-2-0577.pdf>.

No que diz respeito ao princípio da proporcionalidade, como já informado, este se divide em três parâmetros a serem observados pelo intérprete: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A adequação se faz presente quando a medida escolhida é idônea para atingir o objetivo; a necessidade, por sua vez, exige que a medida adotada seja indispensável para alcançar a finalidade, não sendo substituível por outras menos gravosas; a proporcionalidade em sentido estrito, por fim, é a análise do equilíbrio entre os danos da restrição de um direito fundamental e as vantagens da preponderância de outro direito fundamental.

No caso em análise, a verificação da proporcionalidade da medida pretendida com o Projeto de Lei nº 079/2017 impõe os seguintes questionamentos: a criação de uma lei para proibir o consumo de bebidas alcoólicas em locais públicos é medida adequada para atingir esse objetivo? A vedação ao consumo em qualquer local público, nos limites e com as exceções previstas no projeto, é medida necessária para garantir os direitos à segurança, à saúde, à tranquilidade e ao sossego públicos, não havendo medida menos restritiva capaz de alcançar esse objetivo, com a conciliação dos interesses? Os benefícios a serem obtidos com a restrição justificam os meios empregados?

É preciso mencionar que não há precedentes judiciais recentes, no STF, que veiculem entendimento sobre qual direito fundamental deve prevalecer em relação à matéria apresentada no projeto de lei. Ressalta-se, porém, que vários municípios aprovaram propostas trazendo a proibição de consumo de bebidas alcoólicas em locais públicos: São Miguel do Oeste/SC, Passo Fundo/RS, Santa Bárbara d’Oeste/SC, Brusque/SC, Cascavel/PR.

No entanto, também já houve precedente, no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, em que lei municipal proibindo o consumo de álcool em locais públicos foi declarada inconstitucional por infringir o princípio da proporcionalidade, diante da desnecessidade da medida, por não haver peculiaridades locais de maior vulnerabilidade e violência que pudessem justificar a limitação ao direito à liberdade individual:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI Nº 6.377/2014 DO MUNICÍPIO DE CASCAVEL, DE INICIATIVA DO PODER LEGISLATIVO, QUE PROIBE A COMERCIALIZAÇÃO E O CONSUMO DE BEBIDAS ALCÓOLICAS EM LOCAIS PÚBLICOS - VICIO FORMAL DE RELATIVO AO ARTIGO 5º DA LEI - NORMA QUE ESTABELECE ATRIBUIÇÕES DE SECRETARIA MUNICIPAL EM CONFRONTO COM O ARTIGO 66, INCISO IV, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL - INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DOS DEMAIS DISPOSITIVOS RECONHECIDA - VEDAÇÃO DESARRAZOADA FACE ÀS FINALIDADES DA LEI E À LIBERDADE INDIVIDUAL - DESPROPORCIONALIDADE, INADEQUAÇÃO E DESNECESSIDADE DA NORMA FRENTE A OUTRAS DISPOSIÇÕES LEGISLATIVAS QUE REGULAMENTAM A MATÉRIA - POLÍTICA NACIONAL DE SOBRE O CONSUMO DE ÁLCOOL (DECRETO Nº 6.177/2007) - RESTRIÇÕES ADMITIDAS DIANTE DE PECULIARIDADES LOCAIS DE MAIOR VULNERABILIDADE E VIOLÊNCIA - PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. (TJPR - Órgão Especial - AI - 1261686-7 - Curitiba - Rel.: José Sebastião Fagundes Cunha - Rel. Desig. p/ o Acórdão: Luiz Osorio Moraes Panza - Por maioria - - J. 01.06.2015)

Assim, considerando que o Projeto de Lei nº 079/2017 veicula medida que busca assegurar interesses socialmente relevantes – direito à segurança, à saúde, à tranquilidade e até mesmo à vida –, não se pode considerá-lo, a priori, inconstitucional. É indispensável, porém, que haja uma ampla participação pública no trâmite da proposta, com a realização de audiências públicas e oitiva de pessoas e de entidades interessadas, para que o projeto atenda, de fato, ao interesse preponderante da comunidade local.

Não se descarta, no entanto, a possibilidade de que a futura lei, caso aprovado o projeto, venha a ser declarada inconstitucional. Como já foi afirmado, é característica marcante dos direitos fundamentais a intensa conflituosidade, resolvida pelo intérprete por meio da técnica da ponderação, em que se busca verificar, com base no princípio da proporcionalidade, a adequação, a necessidade da medida e o equilíbrio entre os danos da restrição e as vantagens do objetivo alcançado (proporcionalidade em sentido estrito). A solução, nesses casos, é complexa e varia de acordo com as ideologias e a carga de experiências vividas pelo intérprete, havendo razões robustas para defender ambos os posicionamentos.

De qualquer forma, é certo que, caso seja aprovado, o Projeto de Lei nº 079/17 será presumidamente constitucional até eventual decisão judicial em contrário, através de controle concentrado de constitucionalidade. Conforme já decidiu o STF, a inconstitucionalidade não se presume; há de ser manifesta (RTJ, 66:631). No mais, reforça-se ser indispensável a participação popular para legitimar uma decisão política tão complexa a ser tomada pelo Legislativo Municipal, uma vez que, conforme defende Peter Häberle, “a interpretação constitucional é uma atividade que, potencialmente, diz respeito a todos” (teoria da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição).

Assim, diante dos interesses constitucionais a serem resguardados com a medida, não vejo vícios de natureza formal ou material a impedirem a tramitação do Projeto de Lei nº 079/2017, não descartando, porém, a legitimidade de futuras emendas que venham a relativizar a regra proibitiva que se pretende aprovar. A propósito, destaco que o Decreto nº 6.117, de 22 de maio de 2007, que aprovou a Política Nacional sobre o Álcool, prevê como diretriz o estímulo às “medidas que restrinjam, espacial e temporalmente, os pontos de venda e consumo de bebidas alcoólicas, observando os contextos de maior vulnerabilidade às situações de violência e danos sociais” (Anexo I, IV - Diretrizes, item nº 13). Apenas como sugestão, caso não se chegue a um consenso sobre a legitimidade da proibição do consumo de álcool em locais públicos, uma medida alternativa que pode ser adotada, com base na Política Nacional sobre o Álcool, é a proibição em determinados horários (das 22h00min às 06h00min, por exemplo) ou em determinados locais onde costuma haver maior acúmulo de pessoas (praças, parques, escolas), solução em que ainda serão preservados os direitos fundamentais invocados, mas com um grau menor de restrição ao direito à liberdade individual.

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria opina pela legalidade e pela regular tramitação do Projeto de Lei nº 079/2017, desde que se assegure a ampla participação popular na discussão da proposta, mediante todos os instrumentos existentes, para legitimá-lo em face de outras vertentes de interpretação constitucional.

É o parecer.

Guaíba, 04 de outubro de 2017.

GUSTAVO DOBLER

Procurador Jurídico



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