Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 080/2024
PROPONENTE : Ver.ª Carla Vargas
     
PARECER : Nº 172/2024
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Estabelece procedimentos para a regulamentação do funcionamento dos Terreiros de Matriz Africana e Afro Umbandista no âmbito do Município de Guaíba"

1. Relatório:

A Vereadora Carla Vargas (UNIÃO) apresentou o Projeto de Lei do Legislativo nº 080/2024 à Câmara Municipal, o qual “Estabelece procedimentos para a regulamentação do funcionamento dos Terreiros de Matriz Africana e Afro Umbandista no âmbito do Município de Guaíba”. A proposta foi encaminhada à Procuradoria Jurídica para análise nos termos do artigo 94 do Regimento Interno.

2. Mérito:

De fato, a norma insculpida no art. 94 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais. O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 94 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 94, parágrafo único).

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A proibição que se pretende instituir no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local, eis que o Projeto de Lei do Legislativo nº 080/2024 dispõe sobre matéria estritamente municipal, relacionada à gestão política do Poder Executivo, proibindo inauguração de obras públicas incompletas ou que, embora concluídas, não estejam em condições de atender aos fins a que se destinam ou não possam entrar em funcionamento imediato. Nesse sentido, refere o artigo 6º, I, da Lei Orgânica Municipal: “Ao Município compete prover a tudo quanto diga respeito ao seu peculiar interesse e ao bem estar de sua população, cabendo-lhe privativamente, dentre outras, as seguintes atribuições: legislar sobre assunto de interesse local.”

Ocorre que o Projeto de Lei do Legislativo nº 080/2024, embora louvável no seu objeto, contém vício de iniciativa. Para os fins do direito municipal, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Nesse caso, referem os artigos 60 e 82 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

  1. a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;
  2. b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;
  3. c) organização da Defensoria Pública do Estado;
  4. d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Art. 82.  Compete ao Governador, privativamente:

[...]

III - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição;

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Na mesma linha, dispõe, ainda, a Lei Orgânica do Município de Guaíba sobre as hipóteses de competência privativa do Prefeito e sobre a reserva de iniciativa legislativa:

Art. 52 - Compete privativamente ao Prefeito:

(...)

VI – dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei;

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

O Projeto de Lei do Legislativo nº 080/2024 acaba por afrontar todos os dispositivos constitucionais e legais citados, porquanto dispõe sobre a organização administrativa do Poder Executivo e sobre os atos políticos do Prefeito, dispondo ainda sobre o serviço de licenças municipais aos estabelecimentos de matriz africana. Nessa senda, há vício formal de iniciativa por não ser permitido ao membro de Câmara deflagrar o processo legislativo a respeito de tal matéria, que se encontra na chamada “reserva de administração”.

Portanto, apesar de ser honrosa sob o ponto de vista material, a proposta não poderia ter sido apresentada por membro do Poder Legislativo, uma vez que a iniciativa para projetos que tratem da organização e da gestão dos atos públicos e políticos do Executivo e diz respeito aos serviço público de liberação de concessão de licenças o qual compete apenas ao Prefeito, enquanto responsável pela ordenação administrativa. A propósito, destaca-se precedentes do TJRS sobre matéria similar:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CANGUCÚ. LEI MUNICIPAL Nº 4278/2015 . VÍCIO DE INICIATIVA. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. Lei que acrescenta atribuições administrativas à Secretaria Municipal de Obras e de Planejamento, bem como estipula critérios a serem considerados para aprovação de projetos urbanos e concessão do alvará. Iniciativa do Poder Legislativo. Vício. Afronta ao princípio da separação de poderes. ADIN JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME.(Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70068415116, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Julgado em: 07-05-2018)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR N.º 582, DE 20 DE MAIO DE 2019, DO MUNICÍPIO DE CAXIAS DO SUL, QUE ‘ACRESCE DISPOSITIVO À LEI COMPLEMENTAR Nº 377, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2010, QUE CONSOLIDA A LEGISLAÇÃO RELATIVA AO CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO’. Lei oriunda do Poder Legislativo. Instituição de hipóteses de mitigação das regras para concessão de alvará de licença municipal. Vício de iniciativa. Lei que padece de vício formal, na medida em que o Poder Legislativo Municipal invadiu a seara de competência do Poder Executivo Municipal. Afronta ao princípio da harmonia e independência entre os poderes. Violação aos artigos 5º, 10, 60, inciso II, alínea ‘d’, e 82, incisos III e VII, aplicáveis aos Municípios por força do artigo 8º, ‘caput’, todos da Constituição Estadual. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME.(Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70081677007, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Glênio José Wasserstein Hekman, Julgado em: 30-09-2019).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE CAXIAS DO SUL. LEI COMPLEMENTAR Nº 590/2019 DE INICIATIVA DO PODER LEGISLATIVO LOCAL. DISPOSIÇÃO SOBRE CONCESSÃO DE ALVARÁS DE LICENÇA. INTERFERÊNCIA NO CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO. VÍCIO DE INICIATIVA E VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. É inconstitucional a Lei Municipal de iniciativa do Poder Legislativo que estabelece regras para concessão de alvará de licença municipal com o abrandamento a disciplinas previstas no Código de Posturas do Município. Ofensa ao disposto nos artigos 8º, caput, 10, 60, inciso II, alínea “d” e 82, incisos III e VII, da Constituição Estadual. Vício de origem ou de iniciativa que acarreta, também, violação ao princípio constitucional da separação dos poderes. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE.(Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70083458323, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tasso Caubi Soares Delabary, Julgado em: 30-04-2020)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DO MUNICÍPIO DE PASSO FUNDO. 1. Declaração de inconstitucionalidade, sem redução de texto, da Lei Municipal n.º 4.079, de 10 de dezembro de 2003, do Município de Passo Fundo, que dispõe sobre o fornecimento de alvará de localização e funcionamento dos estabelecimentos de venda e prestação de serviços e produtos ópticos e da outras providências a fim de que lhe seja conferida interpretação conforme a Constituição, afastando sua incidência quanto aos estabelecimentos que comercializem, apenas óculos de proteção solar sem grau. 2. No que diz respeito à comercialização de óculos sem grau, a normativa em exame efetivamente impõe exigências e restrições aos estabelecimentos comerciais que não se mostram idôneas ao fim visado, qual seja a proteção da saúde do consumidor, criando um ônus inútil, que mais parece direcionado a resguardar uma reserva de mercado. Por isso, estão violados os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade, da livre concorrência, livre iniciativa e proteção ao consumidor, o que leva ao reconhecimento da inconstitucionalidade apontada. 3. Ação julgada procedente no sentido de dar interpretação conforme, sem redução de texto afastando a incidência da regra quanto aos estabelecimentos que vendam, apenas, óculos de proteção solar sem grau, por afronta aos artigos 82, caput, 19, caput, 157, inciso V, e 266 da Constituição Estadual, combinados com os artigos 12, inciso IV, 170, caput, incisos IV e V, e parágrafo único, da Constituição Federal. POR MAIORIA, VENCIDO O RELATOR, JULGARAM PROCEDENTE. (Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70049091614, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alexandre Mussoi Moreira, Julgado em: 26-05-2014)

Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no artigo 132 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba, para que, pela via política, o Prefeito implemente a medida veiculada.

3. Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela possibilidade de a Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe – PLL 080/2024, em razão de vício de iniciativa caracterizado com base nos artigos 5º, 8º, 10, 60, II, “d”, e 82, III e VII, da CE/RS e nos artigos 52, VI, e 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

É o parecer.

Guaíba, 22 de agosto de 2024.

 

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador-Geral

OAB/RS nº 107.136

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22/08/2024 14:30:33
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