Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 023/2024
PROPONENTE : Ver. João Caldas
     
PARECER : Nº 076/2024
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui o Programa Municipal de Uso de Cannabis para Fins Medicinais no Município de Guaíba"

1. Relatório:

O Vereador Tiago Green apresentou o Projeto de Lei do Legislativo nº 023/2024 à Câmara Municipal, o qual “Institui o Programa Municipal de Uso de Cannabis para Fins Medicinais no Município de Guaíba”. A proposição foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência para análise nos termos do artigo 94 do Regimento Interno.

2. Mérito:

De fato, a norma insculpida no art. 94 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais. O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 94 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário.

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A norma que se pretende instituir no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local e na competência municipal, visto que o Projeto de Lei do Legislativo nº 023/2024 objetiva instituir um programa de uso medicinal de cannabis para fins municipais no estrito âmbito municipal.

No que diz respeito à iniciativa para deflagrar o processo legislativo, as hipóteses de iniciativa privativa do Poder Executivo, que limitam o poder de iniciativa dos vereadores, estão expressamente previstas na Constituição Federal, aplicadas por simetria aos Estados e Municípios. Dispõe o artigo 61, § 1º, da CF/88:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

  • 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

  1. a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;
  2. b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;
  3. c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
  4. d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
  5. e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observadoo disposto no art. 84, VI;  (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
  6. f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

Para os fins do direito municipal, mais relevante ainda é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

  1. a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;
  2. b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;
  3. c) organização da Defensoria Pública do Estado;
  4. d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

No âmbito municipal, o artigo 119 da Lei Orgânica, à semelhança do artigo 60 da Constituição Estadual, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre certas matérias:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

A iniciativa para a deflagração do processo legislativo no presente caso encontra divergência, pois o projeto de lei apresentado, apesar de não dispor sobre criação de cargos, funções ou empregos, nem sobre organização administrativa ou instituição de novos órgãos públicos, pode, dependendo do entendimento, acabar por interferir no modo de funcionamento dos serviços públicos. Não obstante, considera-se não haver inconstitucionalidade manifesta, cabendo às Comissões Permanentes tal análise.

Em relação à matéria de fundo, verifica-se que a proposição busca instituir política pública de âmbito municipal para o incentivo ao uso de cannabis para fins medicinais, o que se alinha aos direitos fundamentais instituídos na CF/88 que asseguram o direito à saúde.

Não obstante, há divergência jurisprudencial acerca da matéria. Veja-se que no âmbito da Câmara Municipal de Porto Alegre a proposta recebeu parecer pela inconstitucionalidade da Procuradoria e da Comissão de Constituição, Justiça e Redação: https://www.camarapoa.rs.gov.br/draco/processos/136588/PARECER_PR%C3%89VIO_N%C2%BA_747-21.pdf;

https://www.camarapoa.rs.gov.br/draco/processos/136588/162-22A_-_17MAI_-_CCJ_-_PROC._0472-21_-_PLL_178_-_MP.pdf

Conforme muito bem apontou a Procuradoria, a presente preposição apresenta vício de inconstitucionalidade e inorganicidade, senão vejamos: A matéria em análise dispõe sobre a organização e funcionamento da administração pública, violando assim, a Lei Orgânica do Município, artigo 94, IV, VII, alínea “c” e artigos 60, II, “d”, 82, II, III, VII da Constituição Estadual. Tem-se que a inconstitucionalidade decorre da iniciativa parlamentar, visto que a proposta, tem como objeto a dotação de atribuições a órgão do Poder executivo e a disciplina da organização e funcionamento da Administração. Desta forma a Comissão de Constituição e Justiça, corrobora com o entendimento da Procuradoria da Casa, concluindo pela existência de óbice de natureza jurídica para a sua tramitação.

A título de exemplo sobre a iniciativa de leis para a criação de políticas de saúde e a distribuição gratuita de medicamentos e insumos, veja-se a seguinte ementa da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 6.532/2021 DO MUNICÍPIO DE SANTA MARIA/RS. DISPÕE SOBRE A DISPONIBILIZAÇÃO GRATUITA DE KITS DE MEDICAMENTOS PARA TRATAMENTO PRECOCE DA COVID-19 NA REDE PÚBLICA DO SUS. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL POR VÍCIO DE INICIATIVA. INICIATIVA RESERVADA AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. 1. Lei nº 6.532/2021, do Município de Santa Maria/RS, que dispõe sobre a disponibilização gratuita de kits de medicamentos para tratamento precoce da Covid-19 na rede pública do SUS do Município de Santa Maria/RS. Lei de iniciativa parlamentar. 2. Ocorre que as políticas públicas de gerenciamento da pandemia são questões que devem ser geridas pelo Executivo, em cada esfera da federação, de acordo com suas competências. No âmbito municipal, trata-se de atribuição da Secretaria de Saúde, em obediências às diretrizes traçadas pelo Prefeito Municipal. 3. Ainda, conforme elucida o artigo 24, inciso XII, da Constituição Federal, a competência para legislar sobre proteção à saúde é concorrente para a União e os Estados. Nesse contexto, os Municípios atuam apenas de forma suplementar, quando houver interesse local, nos termos do artigo 30, incisos I e II, da Constituição Federal. 4. Ofensa ao princípio da separação e independência dos Poderes. Desrespeito aos artigos 8º, “caput”, 10, 60, inciso II, alínea “d” e 82, incisos III e VII, da CE/1989 e artigos 24, inciso XII e 30, incisos I e II, da CF/1988. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70085333730, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luís Dall'Agnol, Julgado em: 10-12-2021)

O TJSP possui também decisão específica sobre a matéria objeto do presente projeto de lei, opinando por sua inconstitucionalidade:

Por oportuno, em recente decisão, o Tribunal de Justiça de São Paulo assim se posicionou em relação a esta matéria específica em lei municipal que consiste em repetição local a uma lei daquele Estado: ADI. Mauá. Lei n. 6.096, de 15/5/2023. Instituiu política municipal de fornecimento gratuito de medicamentos formulados à base de canabidiol. Repetição da Lei Estadual n. 17.618, de 31/1/2023, vetada em sua maior parte pelo Governador. Descompasso entre ambas, criando, se o caso, maior obrigação para o Município do que para o Estado de S. Paulo. Afronta à competência da Anvisa para regular conceitos. Criação de obrigações para o Governo Municipal a partir de lei de iniciativa parlamentar. Impossibilidade. O cotejo do diploma impugnado com a doutrina e, sobretudo, com as normas constitucionais, consoante repetidas manifestações deste col. Órgão Especial, revela que a Câmara Municipal foi muito além de suas atribuições. Ingressou ao campo da iniciativa reservada ao Prefeito e, desta forma, violou sua prerrogativa de análise da conveniência e oportunidade em matéria de gestão pública. Precedentes do col. Órgão Especial. Não se há, nesta quadra, argumentar que a ausência de recursos tão-só tornaria ineficaz o texto legal no respectivo período, porque, afinal, o desatendimento das políticas públicas de saúde dão ensejo à intervenção no Município (CF, art. 35, inc. III). Ausência de estudos prévios acerca do impacto financeiro do programa com repercussões graves na área da Saúde. Em risco o interesse público. Novas violações, desta feita em relação aos arts. 111 da CE e 113 da ADCT. Ação procedente. (TJSP; Direta de Inconstitucionalidade 2228894-65.2023.8.26.0000; Relator (a): Costabile e Solimene; Órgão Julgador: Órgão Especial; Tribunal de Justiça de São Paulo - N/A; Data do Julgamento: 06/12/2023; Data de Registro: 07/12/2023).

Não obstante, há que se considerar que no presente PLL nº 023/2024 o proponente enxugou a proposta, no intuito de retirar obrigações mais específicas ao Poder Executivo Municipal, cabendo às Comissões Permanentes análise mais pormenorizada acerca da constitucionalidade da proposta.

3. Conclusão:

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela ausência de inconstitucionalidade manifesta do Projeto de Lei do Legislativo nº 023/2024, cabendo às Comissões Permanentes a análise pormenorizada quanto às divergências jurisprudenciais acerca da matéria e eventual deliberação em Plenário.

É o parecer.

Guaíba, 14 de março de 2024.

 

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador-Geral

OAB/RS nº 107.136

Documento Assinado Digitalmente no padrão ICP-Brasil por:
ICP-BrasilFERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS:01902836022
14/03/2024 15:35:06
Documento publicado digitalmente por FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS em 14/03/2024 ás 15:34:53. Chave MD5 para verificação de integridade desta publicação 3b9cf97a36b6158367ecc0f98b83858c.
A autenticidade deste poderá ser verificada em https://www.camaraguaiba.rs.gov.br/autenticidade, mediante código 198348.