Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 103/2023
PROPONENTE : Ver. Ale Alves
     
PARECER : Nº 261/2023
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a celebração de convênio com entidades da sociedade Civil e cooperativas de reciclagem de lixo, visando fornecer bicicletas ou carrinho de cargas a catadores de material reciclável, e dá outras providências."

1. Relatório:

 O Vereador Ale Alves apresentou os Projetos de Lei nº 103/2023 e 119/2023 à Câmara Municipal, objetivando autorizar o Poder Executivo a celebrar convênio com entidades da sociedade civil e cooperativas de reciclagem de lixo, visando fornecer bicicletas, triciclos ou carrinhos de carga aos catadores de material reciclável. As propostas foram encaminhadas a esta Procuradoria para análise com fulcro no art. 94 do Regimento Interno, a fim de que seja efetivado o exercício de controle quanto à constitucionalidade e legalidade das proposições.

2. Mérito:

De fato, a norma insculpida no art. 94 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais ou ilegais (art. 94, §1º). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, §1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI) e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A própria doutrina jurídica prevê o instituto do controle de constitucionalidade político também chamado de controle preventivo, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora. A devolução será efetivada mediante despacho fundamentado da Presidência, sempre indicando o artigo constitucional, da Lei Orgânica ou Regimental violado, garantido o direito do autor de recorrer dessa decisão ao Plenário, conforme o art. 94 do RI.Quanto ao conteúdo da matéria proposta, verifica-se que pretende criar deveres ao Executivo de celebrar convênios com entidades da sociedade civil cooperativas de reciclagem de lixo, fornecendo equipamentos de trabalho aos catadores, o que caracteriza inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa e inconstitucionalidade material por afronta ao princípio da separação entre os poderes.

A matéria em análise invade indevidamente a chamada reserva de administração, constante no art. 61, § 1º, da CF/88, substância central do princípio da separação de poderes, inscrito no art. 2º da CF/88, ao dispor sobre convênio que deve ser coordenado e administrado pelo Poder Executivo, através de suas secretarias competentes, o que cabe exclusivamente ao Executivo decidir, por meio de atos administrativos.

Ocorre ainda afronta à norma constitucional porque as disposições de natureza meramente autorizativa do art. 1º têm por finalidade contornar a limitação constitucional da iniciativa (art. 61, § 1º, CF e art. 60, CE/RS) para evitar a configuração de inconstitucionalidade, o que, porém, não tem essa aptidão.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul possui jurisprudência corroborando tal entendimento:

                   

DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.  Lei n° 1.817, de 14 de dezembro de 2016, do Município de São Luiz do Paraitinga, que "tomba como interesse histórico, social, cultural e religioso a Capela de Nossa Senhora do Bom Parto, situada no Bairro de Cachoeira dos Pintos, e dá outras providências".  (1) VÍCIO DE INICIATIVA: Possibilidade de o tombamento ser instituído mediante lei (modalidade "provisória").  Efeito declaratório, que demanda a ulterior prática de atos administrativos pelo Executivo Local para que o tombamento se converta em "definitivo". Não constatação de indevida ingerência do Poder Legislativo na esfera de atribuições do Poder Executivo.  (2) GESTÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA POR ATO NORMATIVO DO LEGISLATIVO: O estabelecimento de normas atinentes à organização e ao funcionamento da Administração Pública, a criação de atribuições a órgão subvencionado pela Edilidade e a definição de prazos rígidos para a prática de atos de gestão pelo Poder Executivo são funções acometidas, de modo privativo, ao Alcaide (arts. 47, II, XIV e XIX, "a", e 144, CE). Inidôneas tais práticas pelos Edis.  Inconstitucionalidade declarada dos arts.  3° “caput”; 4°, § 1°; e 5° todos da Lei guerreada.  (3) NORMAS DE CUNHO AUTORIZATIVO: Lei autorizativa ou de delegação que não encontra sentido no ordenamento jurídico, vez que o Prefeito não precisa de autorização do Legislativo para o exercício de atos de sua exclusiva ou mesmo concorrente competência.  Violação flagrante à separação de Poderes (art. 5º, CE). Inconstitucionalidade declarada dos artigos 4º, "caput", e 6º, ambos da norma local "sub judice".  (4) FALTA DE PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA ESPECÍFICA: não é inconstitucional a lei que inclui gastos no orçamento municipal anual sem a indicação de fonte de custeio em contrapartida ou com seu apontamento genérico.  Doutrina e jurisprudência do STF, do STJ e desta Corte.  AÇÃO PROCEDENTE, EM PARTE.  (TJ SP. ADI n° 2248076-47.2017.8.26.0000. J. 08.08.2018).

Os Projetos de Lei nº 103/2023 e 119/2023, ora em análise, vão de encontro, ainda, ao disposto no art. 60, II, “d”, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, bem como afrontam o previsto no art. 82, VII, do mesmo diploma:

Art. 60 – São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

  1. a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;
  2. b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;
  3. c) organização da Defensoria Pública do Estado;
  4. d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

 

Art. 82 – Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e art. 10 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul):

“A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental.” (em "Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, págs. 438/439).

As proposições tratam, eminentemente, de disciplina tipicamente administrativa, a qual constitui atribuição político-administrativa do Prefeito, caracterizando inconstitucionalidade material e formal. Não cabe à lei de iniciativa parlamentar autorizar o Poder Executivo a celebrar convênios nem definir o objeto dos referidos instrumentos, por se tratar de matéria de competência privativa do Chefe do Executivo, na esfera de sua discricionariedade.

Os Projetos de Lei nº 103/2023 e 119/2023 apresentam, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frente à Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto às atribuições dos órgãos públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Assim, embora sejam admiráveis as justificativas e os termos das propostas, os Projetos de Lei nº 103/2023 e 119/2023 contêm vício de iniciativa e afrontam ao princípio da separação dos poderes, por disporem sobre matéria cuja iniciativa é reservada ao Chefe do Executivo, nos termos dos artigos 2º e 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, dos artigos 5º, 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS e artigo 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

3. Conclusão:

Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor as propostas em epígrafe (PLLs nº 103 e 119/2023), pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, II, “b”, CF/88; art. 60, II, “d”; e art. 82, VII, CE/RS) e de inconstitucionalidade material por afronta ao princípio da separação dos poderes (art. 2º, CF/88; art. 5º, CE/RS), bem como afronta ao art. 119, II, da Lei Orgânica Municipal. Sugere-se a remessa de indicação ao Prefeito para que, pela via política, implemente a medida, apresentando o competente projeto de lei.

É o parecer.

Guaíba, 31 de agosto de 2023.

JULIA ZANATA DAL OSTO

Procuradora

OAB/RS nº 108.241

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