Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 116/2023
PROPONENTE : Ver. Rosalvo Duarte
     
PARECER : Nº 250/2023
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Proíbe a instalação, a adequação e o uso comum de banheiros, por pessoas de sexos diferentes, nas Escolas do Município de Guaíba"

1. Relatório:

O Vereador Rosalvo Duarte (PL) apresentou o Projeto de Lei nº 116/2022 à Câmara Municipal, o qual “Proíbe a instalação, a adequação e o uso comum de banheiros, por pessoas de sexos diferentes, nas Escolas do Município de Guaíba”. A proposta foi encaminhada à Procuradoria da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 94 do Regimento Interno.

2. Mérito:

Preliminarmente, norma inscrita no art. 94 do Regimento Interno da Câmara Municipal outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade ou ilegalidade. Solução análoga é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º), no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina caracteriza a norma inscrita no art. 94 do Regimento Interno como um instrumento do controle de constitucionalidade preventivo, desempenhado pelo Parlamento, por meio de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, antes que a proposição legislativa tenha seu trâmite regimental. A devolução perfaz-se por despacho fundamentado da Presidência, com direito a recurso ao proponente.

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A auto-organização dos Municípios está disciplinada, originariamente, no artigo 29, caput, da Constituição Federal, que prevê: “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos”.

O autogoverno se expressa na existência de representantes próprios dos Poderes Executivo e Legislativo em âmbito municipal – Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores –, que são eleitos diretamente pelo povo. A autoadministração e a autolegislação contemplam o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na CF/88. A respeito da autoadministração e da autolegislação, transcreve-se o artigo 30 da Constituição Federal, que enumera as competências materiais e legislativas dos Municípios:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

Veja-se que, entre as competências legislativas municipais, encontra-se o poder de legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e estadual no que couber. Tal função deve ser exercida nos termos e nos limites da CF/88, visando a estabelecer normas específicas, de acordo com a conjuntura municipal, e a complementar a legislação já existente em âmbito federal e estadual para adequar a aplicação na esfera local.

Assim, não há dúvidas de que ao Município se conferem diversas possibilidades no que diz respeito à atividade legislativa, estando este legitimado a legislar sobre assuntos diversos de interesse local e a suplementar a legislação federal e estadual no que couber, desde que a matéria não adentre o rol de competências privativas da União (art. 22 da CF).

Entretanto, quanto à iniciativa para a deflagração do processo legislativo...

 

Quanto à matéria de fundo, compreende-se, nesse ponto, que há no mínimo divergência acerca de sua inconstitucionalidade, havendo decisão colegiada do TJSP declarando norma análoga inconstitucional por violação a princípios constitucionais:

EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade - Lei Municipal nº 7.040, de 11 de janeiro de 2022, do Município de São Bernardo do Campo, que “proíbe a instalação de banheiros unissex ou compartilháveis nos estabelecimentos ou espaços públicos e privados no Município de São Bernardo do Campo, e dá outras providências” - Diploma normativo que implica discriminação às diversas formas de manifestação da orientação de gênero - Ofensa aos direitos da personalidade, bem como à igualdade, dignidade humana, autonomia e à liberdade previstos nos artigos 1º, inciso III, e 5º, caput, incisos I e X da Constituição Federal - Ingerência, ademais, no padrão estrutural dos estabelecimentos comerciais do Município - Afronta aos princípios da livre iniciativa e do livre exercício da atividade econômica, insculpidos nos artigos 1º, inciso IV, e 170, parágrafo único, da Constituição Federal - Ação julgada procedente. (TJSP. DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 2110632-93.2022.8.26.0000 Órgão Especial. São Paulo, 10 de maio de 2023. VIANNA COTRIM RELATOR)

Portanto, como se verifica da leitura das decisões referidas, há considerável risco de que, no aspecto da constitucionalidade material, a norma seja também considerada inconstitucional, por violação aos vários aspectos da igualdade garantidos na CF/88[1].

Por fim, no que concerne à iniciativa para deflagrar o processo legislativo, as hipóteses de iniciativa privativa do Poder Executivo, que limitam o poder de iniciativa dos vereadores, estão expressamente previstas na Constituição Federal, aplicadas por simetria aos Estados e Municípios. Dispõe o artigo 61, § 1º, da CF/88:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;

e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observadoo disposto no art. 84, VI;  (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

Para os fins do direito municipal, mais relevante ainda é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

No âmbito municipal, o artigo 119 da Lei Orgânica, à semelhança do artigo 60 da Constituição Estadual, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre certas matérias:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

No presente caso, visualiza-se que a proposição pode, ainda, ser considerada inconstitucional por violação da reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, já que, para além da garantia do direito ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com o padrão de norma culta, o projeto estabelece que tal regra se aplica também para toda a Administração Pública, prevendo, inclusive, que o descumprimento deverá levar ao sancionamento dos servidores públicos, o que barraria, em tese, na reserva de iniciativa do art. 60, II, “b”, da CE/RS (“servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade”). Compreende-se que a proposta invade a seara administrativa da Secretaria Municipal de Educação cabendo a ela definir normas de suas políticas educacionais, certamente ferindo a reserva de iniciativa do art. 60, II, “d”, da CE/RS (“criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública”).

Dessa forma, com base nos fundamentos acima expostos, entende-se, à primeira vista, que o projeto é inconstitucional sob o ponto de vista formal e material.

[1] Dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) apontam que, em geral, a maior parte dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos e conhecidos da vítima1, informando o Unicef, por sua vez, que em relação às crianças a maioria dos casos de violência sexual ocorre na residência da vítima e, para os casos em que há informações sobre a autoria dos crimes, 86% dos autores eram conhecidos2.

3. Conclusão:

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, a Procuradoria Jurídica opina pela inconstitucionalidade manifesta do Projeto de Lei nº 116/2023, por ofensa aos direitos da personalidade, bem como à igualdade, dignidade humana, autonomia e à liberdade previstos nos artigos 1º, inciso III, e 5º, caput, incisos I e X da Constituição Federal. Com fulcro na jurisprudência colacionada, recomenda-se que a proposição tenha a sua tramitação ao menos suspensa até que o STF aprecie a matéria.

É o parecer.

Guaíba, 24 de agosto de 2023.

 

 

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador Geral

OAB/RS nº 107.136

 

 

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24/08/2023 17:34:36
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