Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 102/2023
PROPONENTE : Ver. Professor Luciano Rocha
     
PARECER : Nº 241/2023
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a execução do hino nacional, estadual e municipal, nos eventos esportivos escolares do município e dá outras providências "

1. Relatório:

 O Projeto de Lei do Legislativo n.º 102/2023, de autoria do Vereador Professor Luciano Rocha (Republicanos), o qual “Dispõe sobre a execução do hino nacional, estadual e municipal, nos eventos esportivos escolares do município e dá outras providências", foi encaminhado a esta Procuradoria Jurídica pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 94 do Regimento Interno, a fim de que seja efetivado o exercício de controle quanto à constitucionalidade e legalidade da proposição.

2. Mérito:

 De fato, a norma insculpida no art. 94 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais ou ilegais (art. 94, §1º). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, §1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI) e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A própria doutrina jurídica prevê o instituto do controle de constitucionalidade político também chamado de controle preventivo, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora. A devolução será efetivada mediante despacho fundamentado da Presidência, sempre indicando o artigo constitucional, da Lei Orgânica ou Regimental violado, garantido o direito do autor de recorrer dessa decisão ao Plenário, conforme o art. 94 do RI.

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A medida que se pretende aprovar no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local, eis que o Projeto de Lei nº 102/2023 visa tornar obrigatória a execução do Hino Nacional, Estadual e Municipal na abertura de eventos esportivos escolares do município, o que não encontra resistência na Constituição Federal quanto à competência.

Quanto à matéria de fundo, também não há qualquer óbice à proposta. Convém lembrar que o objetivo primordial do Projeto de Lei nº 102/2023 é promover o conhecimento e a valorização do Hino Nacional, Estadual e Municipal e o desenvolvimento do senso de cidadania e patriotismo dos alunos, por meio da execução dos hinos nos eventos esportivos escolares no âmbito do Município de Guaíba/RS.

Ocorre que o Projeto de Lei nº 102/2023, embora louvável no seu objeto, contém vício de iniciativa. A matéria invade de modo indevido a chamada reserva de administração, constante no art. 61, § 1º, da Constituição Federal de 1988, substância central do princípio da separação de poderes inscrito no art. 2º da CF/88, ao dispor a respeito de regras gerais de organização e funcionamento de órgão ligado à estrutura do Poder Executivo, o que cabe exclusivamente ao Prefeito definir, por meio de projeto de lei da sua iniciativa privativa.

O Projeto de Lei nº 102/2023, ora em análise, vai de encontro, ainda, ao disposto no art. 60, II, “d”, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, bem como afronta o previsto no art. 82, VII, do mesmo diploma:

Art. 60 – São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

  1. a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;
  2. b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;
  3. c) organização da Defensoria Pública do Estado;
  4. d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

 

Art. 82 – Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e art. 10 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul):

A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental. ("Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, p. 438/439).

No caso em análise, a medida cria regra a ser cumprida no âmbito do ensino público municipal, o que transpõe os limites do princípio da separação dos poderes, visto que interfere em atos de organização administrativa que cabem apenas ao Prefeito praticar, com o apoio dos órgãos que formam o sistema municipal de ensino. Assim, a organização do funcionamento dos estabelecimentos de ensino, em âmbito local, compete ao Prefeito, com o apoio dos órgãos formadores do sistema municipal de ensino (art. 145, LOM), não cabendo ao Poder Legislativo essa tarefa, até porque depende de atos de planejamento e de organização administrativa.

Além disso, veja-se o que dispõem os artigos 52 e 119 da Lei Orgânica Municipal sobre as hipóteses de competência privativa do Prefeito:

Art. 52 - Compete privativamente ao Prefeito:

(...)

VI – dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei;

(...)

X – planejar e promover a execução dos serviços públicos municipais;

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Leia-se a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a respeito da inconstitucionalidade de leis de iniciativa parlamentar que tratem da organização administrativa impondo atribuições à Secretaria Municipal da Educação:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE NOVO HAMBURGO. LEI MUNICIPAL. INICIATIVA DO PODER LEGISLATIVO. INSERÇÃO DE AULAS DE XADREZ NA GRADE CURRICULAR DA REDE DE ENSINO. VÍCIO FORMAL E MATERIAL. Lei n.º 3.036/2017 do Município de Novo Hamburgo, que institui como matéria curricular o ensino do jogo de xadrez nas escolas municipais de ensino fundamental, como suporte pedagógico para outras disciplinas. Lei de iniciativa do Poder Legislativo. Lei que padece de vício formal e material, na medida em que o Poder Legislativo Municipal invadiu a seara de competência do Poder Executivo Municipal, pois afronta dispositivos constitucionais que alcançam ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa privativa para editar leis que disponham sobre a criação, estruturação e atribuições de Secretarias e órgãos da Administração Pública. Presença de vícios de inconstitucionalidade de ordem formal e material, por afronta aos artigos 8º, 10, 60, inciso II, alínea d, 82, incisos II, III e VII, 149, incisos I, II e III, e 154, incisos I e II, todos da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70074889619, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 12/03/2018)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DO MUNICÍPIO DE VIAMÃO. INSTITUIÇÃO DE PROGRAMA DE HIGIENE BUCAL NA REDE DE ENSINO MUNICIPAL. INICIATIVA DA CÂMARA DE VEREADORES. VÍCIO FORMAL. MATÉRIA RESERVADA AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA SIMETRIA E DA HARMONIA E INDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES. Deve ser declarada inconstitucional a Lei Municipal n.° 3.893, de 16 de agosto de 2011, de iniciativa da Câmara de Vereadores, a instituir programa de higiene bucal na rede de ensino, pois impõe atribuições à Secretaria Municipal da Educação e interfere na organização e funcionamento da Administração, matéria de iniciativa do Chefe do Poder Executivo. A inobservância das normas constitucionais de processo legislativo tem como consequência a inconstitucionalidade formal da lei impugnada, pois violados os princípios da simetria, da harmonia e independência entre os Poderes. Ofensa aos arts. 8º, 10, 60, 82 da Constituição Estadual e 61 da Constituição Federal. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70044693992, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Orlando Heemann Júnior, Julgado em 19/12/2011).

Assim, embora sejam admiráveis a justificativa e os termos da proposta, o Projeto de Lei nº 102/2023 contém vício de iniciativa e afronta ao princípio da separação dos poderes, por dispor sobre matéria cuja iniciativa é reservada ao Chefe do Executivo, nos termos dos artigos 2º e 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, dos artigos 5º, 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS e artigo 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

3. Conclusão:

 Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe – PLL nº 102/2023, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, da CF/88; arts. 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS) e de inconstitucionalidade material por afronta ao princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF/88; art. 5º da CE/RS), bem como afronta ao art. 119, II, da Lei Orgânica Municipal. Sugere-se a remessa de indicação ao Prefeito para que, pela via política, implemente a medida, apresentando o competente projeto de lei.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 16 de agosto de 2023.

JULIA ZANATA DAL OSTO

Procuradora

OAB/RS nº 108.241

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16/08/2023 16:58:35
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