Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 097/2023
PROPONENTE : Ver. Dr. João Collares
     
PARECER : Nº 223/2023
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui as motovias, espaços delimitados ao longo de vias urbanas destinados exclusivamente ao tráfego de motocicletas e congêneres, das segundas-feiras aos sábados, e de bicicletas, nos domingos e nos feriados"

1. Relatório:

O Vereador Dr. João Collares (PDT) apresentou o Projeto de Lei do Legislativo nº 097/2023 à Câmara Municipal, o qual “Institui as motovias, espaços delimitados ao longo de vias urbanas destinados exclusivamente ao tráfego de motocicletas e congêneres, das segundas-feiras aos sábados, e de bicicletas, nos domingos e nos feriados”. A proposta foi encaminhada à Procuradoria para análise nos termos do artigo 94 do Regimento Interno da Câmara Municipal.

2. Mérito:

Preliminarmente, a norma inscrita no art. 94 do Regimento Interno da Câmara Municipal outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade ou ilegalidade. Solução análoga é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, §1º),no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina caracteriza a norma inscrita no art. 94 do Regimento Interno como um instrumento do controle de constitucionalidade preventivo, desempenhado pelo Parlamento, por meio de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, antes que a proposição legislativa tenha seu trâmite regimental. A devolução perfaz-se por despacho fundamentado da Presidência, com direito a recurso ao proponente.

  

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A medida que se pretende regulamentar no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local, eis que o Projeto de Lei nº 097/2023 visa instituir motovias no âmbito municipal, o que concretiza a competência material comum constante no art. 23, XII, da CF/88, também de responsabilidade dos Municípios: “estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito.”

Ocorre, todavia, que o Projeto de Lei do Legislativo nº 097/2023, embora louvável no seu objeto, contém vício de iniciativa. Para os fins do direito municipal, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60. São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Na mesma linha, dispõe, ainda, a Lei Orgânica do Município de Guaíba sobre as hipóteses de competência privativa do Prefeito:

Art. 52 - Compete privativamente ao Prefeito:

(...)

VI – dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei;

(...)

X – planejar e promover a execução dos serviços públicos municipais;

Vale destacar que o mero fato de gerar novas despesas ao Poder Executivo não obstaculiza a tramitação de projetos de lei, desde que haja previsão do programa na lei orçamentária anual, na forma do artigo 154, I, da CE/RS e do artigo 167, I, da CF/88. Inclusive, o Supremo Tribunal Federal já estabeleceu o entendimento de que “Não usurpa a competência privativa do chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração Pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos.” (ARE nº 878.911/RJ, Relator: Min. Gilmar Mendes, publicado em 11/10/2016).

Sucede-se que o Projeto de Lei do Legislativo nº 097/2023, embora não crie consideráveis despesas, traz atribuições ao Executivo no sentido de torná-lo responsável pela concretização da lei, seja colocando e mantendo sinalizações e demarcações com tamanho e cores específicos, seja estabelecendo regras de circulação, além de prever via pública para o início da medida. Por ser vedada a iniciativa parlamentar para os projetos que criem ou alterem a estrutura ou as atribuições de órgãos municipais, tem-se como formalmente inconstitucional a proposta, porquanto deveria ter sido protocolada pelo Chefe do Executivo, nos exatos termos do artigo 60, II, “d”, da CE/RS.

Destarte, apesar de ser honrosa sob o ponto de vista material, a proposta não poderia ter sido apresentada por membro do Poder Legislativo, uma vez que a iniciativa para projetos que criem ou estruturem órgãos da Administração Pública, ou que lhe atribuam obrigações até então inexistentes, compete apenas ao Chefe do Executivo, enquanto responsável pela organização administrativa.

A propósito, destaca-se a jurisprudência do TJRS e de outros Tribunais pátrios:

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 1.464/06, DO MUNICÍPIO DE NOVO HAMBURGO, QUE REGULAMENTA O TRÁFEGO DE VEÍCULOS... COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE MATÉRIA DE TRÂNSITO E TRANSPORTE (CF, ART. 22, XI), OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA PELOS MUNICÍPIOS (CE, ART. 8º). LEI DE INICIATIVA DE VEREADOR. REJEIÇÃO DE VETO, PROMULGAÇÃO PELO PRESIDENTE DA CÂMARA DE VEREADORES. VÍCIO FORMAL, TAREFAS RESERVADAS À INICIATIVA DO PODER EXECUTIVO. OFENSA AO PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA DOS PODERES. VIOLAÇÃO DAS REGRAS INSERTAS NOS ARTIGOS 10, 60, II, d, 61, I, e 82, III e VII. VÍCIOS DE INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL E FORMAL. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. AÇÃO PROCEDENTE. UNÂNIME.(Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70019809953, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Ari Azambuja Ramos, Julgado em: 15-10-2007).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.

Lei Municipal de iniciativa do Legislativo que regulamenta trânsito de bicicletas nas vias do Município. Violação do artigo 8º da Constituição Estadual combinado com o artigo. 22, XI, da Constituição Federal. Afronta aos artigos 10, 60, II, “d”, combinado com artigo 82, VII, da Carta Estadual. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70003867827, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cacildo De Andrade Xavier, Julgado em 02/12/2002)

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA DOS PODERES. VÍCIO DE ORIGEM. É inconstitucional a Lei nº 1.599/10, de 07 de abril de 2010, do Município de Estância Velha, que dispõe sobre a regulamentação de estacionamento em via pública de veículo escolar, porque padece de vício de origem, ferindo a harmonia e independência dos Poderes, uma vez que a lei, de iniciativa do Poder Legislativo, trata de matéria atinente à administração do Município. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNÂNIME.(Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70042618769, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Julgado em: 25-07-2011).

Nesse sentido o TJRN considerou inconstitucional, por invadir a iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo, propositura com idêntico teor ao ora em análise na ADI 2016.018669-1, que previa a implantação de motovias:

Ementa: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PRELIMINAR DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO ANTE A AUSÊNCIA DE CONTRARIEDADE DIRETA AO TEXTO DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. INOCORRÊNCIA. INDICAÇÃO IDÔNEA NA PETIÇÃO INICIAL DOS PARADIGMAS CONSTITUCIONAIS AFRONTADOS PELA LEI IMPUGNADA. LEI MUNICIPAL 420/2015 DO MUNICÍPIO DE NATAL QUE DETERMINA A IMPLANTAÇÃO DE “MOTOVIAS” (VIAS ESPECÍFICAS PARA MOTOCICLETAS) NAS PRINCIPAIS AVENIDAS DE NATAL, DISPONDO SOBRE A FORMA DE UTILIZAÇÃO DESTAS PELOS MOTOCICLISTAS, AS OBRIGAÇÕES MUNICIPAIS QUANTO À SINALIZAÇÃO DAS VIAS, AS AVENIDAS QUE SERÃO AGRACIADAS PELAS MOTOVIAS E ESTABELECE PRAZO PARA QUE O PODER PÚBLICO MUNICIPAL REGULAMENTE A LEI. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO MUNICIPAL. AFRONTA AOS PRECEITOS INSCULPIDOS NO ARTIGO 2º DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. INCONSTITUCIONALIDADE DO DIPLOMA LEGAL IMPUGNADO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO DIRETA.

3. Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela possibilidade de a Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, em razão de vício de iniciativa caracterizado com base no art. 60, II, “d”, da Constituição Estadual Gaúcha e no art. 52, VI e X, da Lei Orgânica Municipal.

Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no artigo 132 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba, para que, pela via política, o Prefeito implemente a medida diretamente.

É o parecer.

Guaíba, 03 de agosto de 2023.

 

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador-Geral

OAB/RS 107.136

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03/08/2023 14:13:38
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