Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 069/2023
PROPONENTE : Ver. Rosalvo Duarte
     
PARECER : Nº 170/2023
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Altera a Lei Municipal n.º 2.579, de 13 de março de 2010 que cria o Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes, integrante da Política de Assistência Social"

1. Relatório:

O Projeto de Lei do Legislativo n.º 069/2023, de autoria do Vereador Rosalvo Duarte (PL), o qual “Altera a Lei Municipal n.º 2.579, de 13 de março de 2010 que cria o Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes, integrante da Política de Assistência Social”, foi encaminhado a esta Procuradoria Jurídica pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 94 do Regimento Interno, a fim de que seja efetivado o exercício de controle quanto à constitucionalidade e legalidade da proposição.

2. Mérito:

De fato, a norma insculpida no art. 94 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais ou ilegais (art. 94, §1º). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, §1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI) e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A própria doutrina jurídica prevê o instituto do controle de constitucionalidade político também chamado de controle preventivo, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora.

A devolução será efetivada mediante despacho fundamentado da Presidência, sempre indicando o artigo constitucional, da Lei Orgânica ou Regimental violado, garantido o direito do autor de recorrer dessa decisão ao Plenário, conforme o art. 94, parágrafo único do RI.

Constata-se que a matéria constante do Projeto de Lei do Legislativo n.º 069/2023, de fato insere-se no âmbito de matérias de interesse local, nos termos do artigo 30, I da Constituição Federal, portanto de competência legislativa do município, ao qual ainda cabe suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, por força do artigo 30, II da CF/88. Dispõe o artigo 30 da Constituição Federal, prevendo a faculdade normativa dos Municípios, através da capacidade de editar leis locais próprias ou legislação suplementar às leis estaduais e federais:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A medida de proteção aos adolescentes que se pretende instituir no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque, além de veicular matéria de competência material do Município (artigo 227 da CF), não atrelada às competências legislativas privativas da União (artigo 22 da CF), o Projeto de Lei nº 069/2023 registra, na legislação municipal, mais especificamente na Lei Municipal n.º 2.579, de 13 de março de 2010, que cria o Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes, que aos adolescentes incluídos em programas de acolhimento institucional no Município de Guaíba deverá ser assegurado o direito à profissionalização, mediante ações de capacitação ao mercado formal de trabalho, o que se encontra alinhado aos deveres constitucionais de proteção da infância e adolescência.

Quanto à matéria de fundo, também não há qualquer óbice à proposta. Convém lembrar que o objetivo primordial do Projeto de Lei nº 069/2023 é promover a proteção dos interesses dos adolescentes sob medida protetiva de acolhimento institucional, mormente do seu direito à profissionalização, mediante parcerias promovidas com entidades não governamentais que desenvolvam projetos de capacitação e ofereçam cursos profissionalizantes que favoreçam o acesso ao mercado formal de trabalho.

O artigo 227, caput, da Constituição Federal prevê que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” A expressão “Estado”, obviamente, traduz-se em um conceito lato sensu, abrangendo União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Mais especificamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), atendendo às diretrizes constitucionais, estabeleceu um verdadeiro conjunto de normas destinadas à proteção integral e absoluta das crianças e dos adolescentes, que passaram a ser tratados como efetivos sujeitos de direitos. Os artigos 3º, 4º, 69 e 94, X, do referido Estatuto indicam, resumidamente, o direito à profissionalização garantido aos adolescentes. Veja-se:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 69. O adolescente tem direito à profissionalização e à proteção no trabalho, observados os seguintes aspectos, entre outros:

I - respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento;

II - capacitação profissional adequada ao mercado de trabalho.

Art. 94. As entidades que desenvolvem programas de internação têm as seguintes obrigações, entre outras:

(...)

X - propiciar escolarização e profissionalização;

 

 

É perceptível, pois, que a medida pretendida no Projeto de Lei nº 069/2023 é compatível com os interesses defendidos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90).

Também não incorre em inconstitucionalidade formal, visto que não cria obrigações ou atribuições a órgãos públicos, pois prevê como forma de assegurar o direito à profissionalização dos adolescentes sob medida protetiva de acolhimento institucional a promoção de parcerias com entidades não governamentaisque desenvolvam projetos de capacitação e ofereçam cursos profissionalizantes, o que não usurpa a esfera de competência do Poder Executivo Municipal prevista no art. 61 da Constituição Federal, tendo quanto a isso observado os requisitos formais do processo legislativo, além de não ultrapassar o disposto no art. 2º da CF/88 e art. 10 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul quanto à separação dos poderes.

Dispõe o mencionado artigo 61, § 1º, da CF:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

  • 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

  1. a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;
  2. b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;
  3. c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
  4. d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
  5. e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI;  (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
  6. f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

As matérias de competência e iniciativa reservadas são rol taxativo na Constituição Federal de 1988 e nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas, lecionando HELY LOPES MEIRELLES que:

 “Leis de iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores, são todas as que a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente, à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, §1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal. São, pois, de iniciativa exclusiva do prefeito, como chefe do Executivo local, os projetos de lei que disponham sobre criação, estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entes da Administração Pública Municipal; matéria de organização administrativa e planejamento de execução de obras e serviços públicos; criação de cargos, funções ou empregos públicos na Administração direta, autárquica e fundacional do Município; o regime jurídico e previdenciário dos servidores municipais, fixação e aumento de sua remuneração; o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias, o orçamento anual e os créditos suplementares e especiais. Os demais projetos competem concorrentemente ao prefeito e à Câmara, na forma regimental.

Assim, as hipóteses de iniciativa reservada são apenas e tão somente aquelas previstas no texto constitucional: artigos 93, caput; 96, I e II; 127, § 2º; 51, IV; 52, XIII; 73, caput c/c 96; 61, § 1º; 165, I a III. Inclusive, o STF já decidiu não ser possível interpretação ampliativa quanto às regras de iniciativa parlamentar:

DECISÃO RECURSO EXTRAORDINÁRIO – LEI MUNICIPAL – INICIATIVA – SEPARAÇÃO DOS PODERES – PRECEDENTES DO PLENÁRIO – PROVIMENTO. [...] 2. Assiste razão ao recorrente. Os pronunciamentos do Supremo são reiterados no sentido de que a interpretação das regras alusivas à reserva de iniciativa para processo legislativo submetem-se a critérios de direito estrito, sem margem para ampliação das situações constitucionalmente previstas – medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade nº 724/RS, relator o ministro Celso de Mello, acórdão publicado no Diário da Justiça em 27 de abril de 2001, ação direta de inconstitucionalidade nº 2.464/AP, relatora a ministra Ellen Gracie, acórdão publicado no Diário da Justiça em 25 de maio de 2007, e ação direta de inconstitucionalidade nº 3.394/AM, relator o ministro Eros Grau, acórdão publicado no Diário da Justiça em 24 de agosto de 2007. Confiram a ementa do acórdão formalizado pelo Colegiado Maior nesse último processo: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 1º, 2º E 3º DA LEI N. 50, DE 25 DE MAIO DE 2.004, DO ESTADO DO AMAZONAS. TESTE DE MATERNIDADE E PATERNIDADE. REALIZAÇÃO GRATUITA. EFETIVAÇÃO DO DIREITO À ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR QUE CRIA DESPESA PARA O ESTADO-MEMBRO. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL NÃO ACOLHIDA. CONCESSÃO DEFINITIVA DO BENEFÍCIO DA ASSISTÊNCIA JUDICÁRIA GRATUITA. QUESTÃO DE ÍNDOLE PROCESSUAL. INCONSTITUCIONALIDADE DO INCISO I DO ARTIGO 2º. SUCUMBÊNCIA NA AÇÃO INVESTIGATÓRIA. PERDA DO BENEFÍCIO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. INCONSTITUCIONALIDADE DO INCISO III DO ARTIGO 2º. FIXAÇÃO DE PRAZO PARA CUMPRIMENTO DA DECISÃO JUDICIAL QUE DETERMINAR O RESSARCIMENTO DAS DESPESAS REALIZADAS PELO ESTADO-MEMBRO. INCONSTITUCIONALIDADE DO INCISO IV DO ARTIGO 2º. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 61, § 1º, INCISO II, ALÍNEA "E", E NO ARTIGO 5º, INCISO LXXIV, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL . 1. Ao contrário do afirmado pelo requerente, a lei atacada não cria ou estrutura qualquer órgão da Administração Pública local. Não procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá ser proposto pelo Chefe do Executivo. As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo. Precedentes. […] 7. Ação direta julgada parcialmente procedente para declarar inconstitucionais os incisos I, III e IV, do artigo 2º, bem como a expressão "no prazo de sessenta dias a contar da sua publicação", constante do caput do artigo 3º da Lei n. 50/04 do Estado do Amazonas. A reserva de iniciativa material é exceção e surge apenas quando presente a necessidade de se preservar o ideal de independência entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Incumbe ao município complementar a legislação relativa à proteção do meio ambiente, pelo qual respondem indistintamente as instâncias políticas representativas dos interesses locais. Verificada a ausência de proposição normativa tendente a suprimir ou limitar as atribuições essenciais do Chefe do Executivo no desempenho da função de gestor superior da Administração, descabe cogitar de vício formal de lei resultante de iniciativa parlamentar. 3. Ante os precedentes, provejo o extraordinário para assentar a constitucionalidade da Lei nº 3.338/2009, do Município de Cubatão/SP. 4. Publiquem. (RE 729729, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 13/12/2016, publicado em DJe-017 DIVULG 31/01/2017 PUBLIC 01/02/2017).

O rol de iniciativas privativas do Chefe do Executivo, portanto, é estrito e não admite interpretação ampliativa; do contrário, ocorreria subversão e/ou perturbação do esquema organizatório funcional estabelecido na CF, base do princípio da conformidade funcional, que rege a interpretação dos dispositivos constitucionais. Em palavras mais simples, o intérprete da Constituição não pode chegar a uma conclusão que altere “a repartição de funções constitucionalmente estabelecidas pelo constituinte originário, como é o caso da separação de poderes” (LENZA, 2011, p. 148).

O artigo 61, § 1º, da CF não prevê, a princípio, restrição expressa à deflagração de projeto de lei, por parlamentar, estabelecendo política pública. Deve-se, porém, verificar quais são os limites, mormente diante das alíneas “b” e “e”, que afetam ao Chefe do Executivo os projetos sobre organização administrativa, criação ou extinção de órgãos públicos.

Na ADI nº 3.178/AP, paradigma para a fase mais moderna de interpretação do artigo 61, § 1º, o Ministro Carlos Ayres Britto registrou expressamente o seu posicionamento sobre a criação de políticas públicas pelo Legislativo:

(...) a princípio, não vejo como inconstitucional uma lei, de iniciativa de qualquer parlamentar, que institua política pública no âmbito de órgão estatal ou de entidade preexistente, desde que essa lei não crie fundo, redundantemente, financeiro para o implemento dessa política pública.

    

O STF, abraçando a fase moderna de interpretação do artigo 61, § 1º, da CF, vem interpretando as restrições à iniciativa parlamentar com menor rigor, permitindo, sob certas balizas, a formulação de políticas públicas pelo Legislativo. Em dois casos emblemáticos, a Corte Suprema defendeu a iniciativa parlamentar para tratar desse tema:

1) AgR no RE nº 290.549/RJ: lei de iniciativa parlamentar que criou o programa “Rua da Saúde”, a qual foi julgada constitucional, já que “a edição da referida lei, decorrente de iniciativa parlamentar, não representou invasão da esfera da competência privativa do Chefe do Poder Executivo local”, registrando-se, no voto do relator, a seguinte justificativa: “(...) a criação do programa instituído por meio dessa lei apenas tinha por objetivo fomentar a prática de esportes em vias e logradouros públicos, tendo ficado expressamente consignado nesse texto legal que ‘a implantação, coordenação e acompanhamento do programa ficará a cargo do órgão competente do Poder Executivo’, a quem incumbirá, também, aprovar as vias designadas pelos moradores para a execução do programa”;

2) ADI nº 3.394/AM: lei de iniciativa parlamentar que criou o programa de gratuidade de testes de maternidade e paternidade, a qual foi julgada constitucional por 8 votos a 2, “já que, ao contrário do afirmado pelo requerente, a lei atacada não cria ou estrutura qualquer órgão da Administração Pública local.”

Vale lembrar que, na Constituição Federal, a restrição à iniciativa parlamentar prevista no artigo 61, § 1º, II, “e”, se limita aos projetos que criem ou extingam Ministérios ou órgãos da administração pública. Ocorre que a instituição de políticas públicas não se confunde com a criação de órgãos públicos. Como bem definiu Cavalcante Filho (2013, p. 22), “a formulação de uma política pública consiste mais em estabelecer uma conexão entre as atribuições de órgãos já existentes, de modo a efetivar um direito social.” Ou seja, a política pública, alicerçada nos direitos fundamentais (de aplicação imediata – artigo 5º, § 1º, CF), não envolve, por si só, a criação de um órgão público; ela se constitui em tarefas a serem implementadas por setores já existentes, sendo possível na medida em que não ocorra a transformação material do órgão, isto é, criação de novas atribuições.

A política pública de criação permitida por atividade parlamentar, portanto, é a que estabelece uma conexão entre uma atribuição já existente no órgão público e a efetivação de um direito fundamental, sem criar novas funções ou atribuições. Nesse sentido, a iniciativa do Chefe do Executivo se restringe “à elaboração de normas que remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura da Administração Pública.”[1] Veja-se a esclarecedora lição de Cavalcante Filho (2013, p. 24):

Perceba-se que, ao se adotar essa linha de argumentação, é necessário distinguir a criação de uma nova atribuição (o que é vedado mediante iniciativa parlamentar) da mera explicitação e/ou regulamentação de uma atividade que já cabe ao órgão. Por exemplo: atribuir ao SUS a estipulação de critérios para a avaliação da qualidade dos cursos superiores de Medicina significaria dar uma nova atribuição ao sistema, ao passo que estipular prazos para o primeiro tratamento de pessoas diagnosticadas com neoplasia nada mais é que a explicitação – ou, melhor, a regulamentação (lato sensu) de uma atividade que já cabe ao Sistema desempenhar.

O Projeto de Lei nº 069/2023 não pretende criar novo órgão público ou estabelecer uma nova atribuição; apenas explicita, na legislação local, a atividade que já é de incumbência do Poder Público. O texto objetiva, especialmente, reproduzir Lei Municipal que cria o Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes um dever já previsto na legislação federal (art. 94, X, do ECA), medida que tem respaldo na aplicação imediata do direito fundamental dos adolescentes à profissionalização. Isto é, a atribuição já existe; só está sendo regulamentada para garantir a sua efetividade.

Assim, a medida pretendida com o Projeto de Lei nº 069/2023, além de não criar novas atribuições além das já existentes no Estatuto da Criança e do Adolescente, visa especialmente a garantir, com efetividade, o direito dos adolescentes acolhidos à profissionalização, cuja obrigação, imposta ao Poder Público em todas as esferas da Federação, decorre da CF/88 (artigo 227) e do ECA (artigo 4º e artigos 69 e 94, X).

[1]   VIEIRA JUNIOR, Ronaldo Jorge Araujo. O Supremo Tribunal Federal e o Controle Jurisdicional da Atuação do Poder Legislativo: visão panorâmica e comentada da jurisprudência constitucional. Brasília: Senado Federal, 2007, p. 260.

3. Conclusão:

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela ausência de inconstitucionalidade manifesta e pela regular tramitação do Projeto de Lei nº 069/2023, por apenas dar efetividade, na legislação local, ao dever já previsto nos artigos 4º, 69 e 94, X, do Estatuto da Criança e do Adolescente e no artigo 227 da Constituição Federal de 1988.

É o parecer.

Guaíba, 15 de junho de 2023.

JULIA ZANATA DAL OSTO

Procuradora

OAB/RS 108.241

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15/06/2023 16:06:18
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