Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 071/2023
PROPONENTE : Ver. Manoel Eletricista
     
PARECER : Nº 168/2023
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui o descarte correto do óleo de cozinha produzido nos comércios e em residências, e dá outras providências"

1. Relatório:

O Vereador Manoel Eletricista (PSDB) apresentou o Projeto de Lei do Legislativo nº 071/2023 à Câmara Municipal, o qual “Institui o descarte correto do óleo de cozinha produzido nos comércios e em residências, e dá outras providências”. A proposição foi encaminhada a esta Procuradoria para análise com fulcro no art. 105 do RI.

2. Mérito:

Preliminarmente, verifica-se que a norma inscrita no artigo 105 do Regimento Interno outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105,III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, §1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido – e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Internocaracterizando-o comoum controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer todo o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução é efetuada mediante despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

Quanto ao conteúdo da matéria proposta, verifica-se que pretende criar deveres ao Executivo, para coordenar uma política pública de destinação de produtos como óleo de cozinha no Município de Guaíba, o que caracteriza inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa e inconstitucionalidade material por afronta ao princípio da separação entre os poderes.

A matéria invade indevidamente a chamada reserva de administração, constante no art. 61, § 1º, da CF/88, substância central do princípio da separação de poderes, inscrito no art. 2º da CF/88, ao disporsobre programa que, ao fim e ao cabo, será coordenado pelo Poder Executivo, através de seus órgãos públicos, parao recebimento e distribuição de produtos de uso veterinário à população de baixa renda, o que cabeapenas ao Prefeito decidir, por meio de atos administrativos.

O Projeto de Lei nº 071/2023, ora em análise, vai de encontro, ainda, ao disposto no art. 60, II, “d”, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, bem como afronta o previsto no art. 82, VII, do mesmo diploma:

Art. 60 – São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II – disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

 

Art. 82 – Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII – dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e art. 10 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul):

“A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tãosomente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental.” (em "Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, págs. 438/439).

A proposição trata, eminentemente, de disciplina tipicamente administrativa, que constitui atribuição político-administrativa do Prefeito, caracterizando inconstitucionalidade material e formal. Não cabe à lei de iniciativa parlamentar estabelecer os programas que devem ser coordenados pelo Poder Executivo, por se tratar de matéria de competência privativa do Chefe do Executivo, na esfera de sua discricionariedade.

O Projeto de Lei nº 071/2023 apresenta, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frenteà Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto às atribuições dos órgãos públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I – criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II – organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III – servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV – criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Com efeito, há precedentes em Tribunais em que se assentou a inconstitucionalidade de proposituras com o mesmo teor da proposta ora em análise:

TJSP. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 173.199.0/5 Requerente: Prefeito Municipal de Bauru Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Bauru EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar n° 5.650 de 15 de setembro de 2008, do Município de Bauru. Norma de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, que institui a "coleta", o "Armazenamento" e "Desenvolvimento da Política de Reutilização" de todo óleo de cozinha que venha a ser entregue pela população. Matéria reservada à iniciativa do chefe do Executivo. Não observância do princípio da separação dos poderes, consagrado no art. 5º da Carta Estadual. Criação de despesas sem previsão de recursos. Inadmissibilidade. Ação julgada procedente. Relator(a): Reis Kuntz Comarca: São Paulo Órgão julgador: Órgão Especial Data do julgamento: 29/07/2009.

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei nº 3.464, de 23 de fevereiro de 2018, do Município de Hortolândia, que - "dispõe sobre a obrigatoriedade de implantação de sistema de coleta de óleo de cozinha para fins de reciclagem". OFENSA ÀS DISPOSIÇÕES DO ARTIGO 180, INCISO II, E ARTIGO 191, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. Reconhecimento. Lei impugnada que versa sobre desenvolvimento urbano (art. 180, II) e melhoria do meio ambiente (art. 191), mas, que não teve seu projeto submetido à estudo técnico e participação popular. Como já foi decidido por este Órgão Especial, "a participação popular na criação de leis versando sobre política urbana local não pode ser concebida como mera formalidade ritual passível de convalidação. Trata-se de instrumento democrático onde o móvel do legislador ordinário é exposto e contrastado com ideias opostas que, se não vinculam a vontade dos representantes eleitos no momento da votação, ao menos lhe expõem os interesses envolvidos e as consequências práticas advindas da aprovação ou rejeição da norma, tal como proposta" (TJSP, ADIN nº 994.09.224728-0, Rel. Des. Artur Marques, j. 05/05/2010). Inconstitucionalidade manifesta. Ação julgada procedente. 2170849-44.2018.8.26.0000. Relator(a): Ferreira Rodrigues Comarca: São Paulo Órgão julgador: Órgão Especial Data do julgamento: 13/02/2019 Data de publicação: 26/02/2019.

Ocorre ainda afronta à norma constitucional porque as disposições de natureza meramente autorizativa têm por finalidade contornar a limitação constitucional da iniciativa (art. 61, § 1º, CF e art. 60, CE/RS) para evitar a configuração de inconstitucionalidade, o que, porém, não tem essa aptidão – artigos 1º, parágrafo único, e 3º.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul possui jurisprudência remansosa corroborando tal entendimento:

               

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE PELOTAS. LEI MUNICIPAL Nº 6.019/2013 QUE INCLUI NO CALENDÁRIO OFICIAL DE EVENTOS DO MUNICÍPIO AS FESTAS DE IEMANJÁ E NOSSA SENHORA DOS NAVEGANTES. Constitui-se em vício de iniciativa a promulgação, pelo Poder Legislativo de Lei Municipal que, ao incluir no calendário oficial de eventos do município as festas de Iemanjá e de Nossa Senhora dos Navegantes, interfere na organização de órgãos da Administração Pública, matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo; bem como origina despesas não previstas na lei de diretrizes orçamentárias, com a criação de atribuições e serviços a serem executados pela Administração Municipal. Afronta ao artigo 8º, artigo 10, artigo 60, inciso II, alínea "d", artigo 61, incisos I e II, artigo 82, incisos III e VII, artigo 149, incisos I, II e III, bem como ao artigo 154, incisos I e II, todos da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE. UNÂNIME (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70057519886, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 06/10/2014)

DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.  Lei n° 1.817, de 14 de dezembro de 2016, do Município de São Luiz do Paraitinga, que "tomba como interesse histórico, social, cultural e religioso a Capela de Nossa Senhora do Bom Parto, situada no Bairro de Cachoeira dos Pintos, e dá outras providências".  (1) VÍCIO DE INICIATIVA: Possibilidade de o tombamento ser instituído mediante lei (modalidade "provisória").  Efeito declaratório, que demanda a ulterior prática de atos administrativos pelo Executivo Local para que o tombamento se converta em "definitivo". Não constatação de indevida ingerência do Poder Legislativo na esfera de atribuições do Poder Executivo.  (2) GESTÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA POR ATO NORMATIVO DO LEGISLATIVO: O estabelecimento de normas atinentes à organização e ao funcionamento da Administração Pública, a criação de atribuições a órgão subvencionado pela Edilidade e a definição de prazos rígidos para a prática de atos de gestão pelo Poder Executivo são funções acometidas, de modo privativo, ao Alcaide (arts. 47, II, XIV e XIX, "a", e 144, CE). Inidôneas tais práticas pelos Edis.  Inconstitucionalidade declarada dos arts.  3° “caput”; 4°, § 1°; e 5° todos da Lei guerreada.  (3) NORMAS DE CUNHO AUTORIZATIVO: Lei autorizativa ou de delegação que não encontra sentido no ordenamento jurídico, vez que o Prefeito não precisa de autorização do Legislativo para o exercício de atos de sua exclusiva ou mesmo concorrente competência.  Violação flagrante à separação de Poderes (art. 5º, CE). Inconstitucionalidade declarada dos artigos 4º, "caput", e 6º, ambos da norma local "sub judice".  (4) FALTA DE PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA ESPECÍFICA: não é inconstitucional a lei que inclui gastos no orçamento municipal anual sem a indicação de fonte de custeio em contrapartida ou com seu apontamento genérico.  Doutrina e jurisprudência do STF, do STJ e desta Corte.  AÇÃO PROCEDENTE, EM PARTE.  (TJ SP. ADI n° 2248076-47.2017.8.26.0000. J. 08.08.2018).

Assim, embora sejam admiráveis a justificativa e os termos da proposta, o Projeto de Lei do Legislativo nº 071/2023 contém vício de iniciativa e afronta ao princípio da separação dos poderes, por dispor sobre matéria cuja iniciativa é reservada ao Chefe do Poder Executivo, nos termos dos artigos 2º e 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, dos artigos 5º, 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS e artigo 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

3. Conclusão:

 Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposta em epígrafe (PLL nº 071/2023), pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, II, “b”, da CF/88; arts. 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS) e de inconstitucionalidade material por afronta ao princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e art. 5º da CE/RS), bem como afronta ao art. 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

É o parecer.

Guaíba, 12 de junho de 2023.

 

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador-Geral

OAB/RS 107.136

 

 

 

 

 

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