Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 054/2023
PROPONENTE : Ver. Marcos SJ
     
PARECER : Nº 129/2023
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Regulamenta, no âmbito do Município de Guaíba, a Lei no 13.722, de 4 de outubro de 2018, que torna obrigatória a capacitação em noções básicas de primeiros socorros de professores e de funcionários de estabelecimentos de ensino públicos e privados de educação básica e de estabelecimentos de recreação infantil."

1. Relatório:

O Ver. Marcos SJ apresentou o Projeto de Lei do Legislativo nº 054/2023 à Câmara Municipal, objetivando regulamentar, no Município de Guaíba, a Lei nº 13.722, de 4 de outubro de 2018, que torna obrigatória a capacitação em noções básicas de primeiros socorros de professores e de funcionários de estabelecimentos de ensino públicos e privados de educação básica e de estabelecimentos de recreação infantil. A proposição foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência para análise nos termos do art. 94 do Regimento Interno.

2. Mérito:

A norma inscrita no art. 94 do Regimento Interno da Câmara Municipal outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade ou ilegalidade. Solução análoga é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º), no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina caracteriza a norma inscrita no art. 94 do Regimento Interno como um instrumento do controle de constitucionalidade preventivo, desempenhado pelo Parlamento, por meio de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, antes que a proposição legislativa tenha seu trâmite regimental. A devolução perfaz-se por despacho fundamentado da Presidência, com direito a recurso ao proponente.

O art. 18 da CF/88, inaugurando o tema da organização do Estado, define que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição” O termo autonomia política, nesse sentido, envolve o conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local;

II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV – criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI – manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A política que se busca implementar no Município de Guaíba se insere na definição de interesse local, porquanto se restringe ao estrito âmbito do Município de Guaíba e diz respeito à garantia de condições de segurança escolar, dever este compreendido no art. 227 da CF/88, para o que o Município é competente, na forma do art. 23, inciso V, da CF/88.

Além disso, no que concerne às competências legislativas, a CF/88 define o ensino e a educação como matérias de competência concorrente (art. 24, inciso IX), sobre as quais à União incumbe legislar acerca de normas gerais (art. 24, § 1º) e aos Estados e ao Distrito Federal suplementá-las na medida de suas peculiaridades regionais (art. 24, § 2º). Ocorre que o art. 30, incisos I e II, da CF/88 é claro ao assegurar aos Municípios a competência para legislar sobre os assuntos de interesse local, bem como para suplementar, no que couber, a legislação federal e a estadual. Nesses termos, a interpretação adequada das regras constitucionais de distribuição de competências é a que veda aos Municípios a atividade legislativa apenas sobre as matérias que esbarrem na competência privativa do art. 22 da CF/88, atribuída rigorosamente à União, nada impedindo, por outro lado, que legislem com base no interesse local sobre as matérias de competência concorrente. Tanto é que, do contrário, não seria possível a formação dos típicos códigos sanitários municipais (“proteção e defesa da saúde” – art. 24, XII), códigos ambientais (“proteção do meio ambiente” – art. 24, VI), códigos tributários e leis de ordenamento territorial (“direito tributário” e “direito urbanístico” – art. 24, I).

Veja-se que, na jurisprudência, é acolhido o entendimento da competência legislativa suplementar complementar dos Municípios para legislarem sobre matérias versadas no art. 24 da CF/88, desde que para detalhá-las à sua realidade local, conferindo-lhes efetividade e maior compatibilidade com as necessidades municipais:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI 10.432/12 DO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE – PROIBIÇÃO DE VENDA DE CIGARROS AVULSOS – MATÉRIA DE INTERESSE LOCAL – COMPETÊNCIA LEGISLATIVA SUPLEMENTAR DO MUNICÍPIO – IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. Embora a competência para legislar sobre produção e consumo seja concorrente entre a União e os Estados, assegura-se ao Município competência para suplementar a legislação federal e estadual no que couber e legislar sobre assuntos de interesse local, nos termos do artigo 30, da CF e artigos 10 e 169, da Constituição Estadual. Inexiste inconstitucionalidade na Lei 10.432/12, do Município de Belo Horizonte, ao dispor sobre a proibição da venda de cigarros avulsos, por se tratar de questão afeta a direito do consumidor, de nítido interesse local, e por não haver conflito com a legislação federal. Improcedência da representação. (TJ-MG – Ação Direta Inconst: 10000120699962000 MG, Relator: Heloisa Combat, Data de Julgamento: 10/04/2013, Órgão Especial / ÓRGÃO ESPECIAL, Data de Publicação: 17/05/2013)

DIREITO CONSTITUCIONAL. REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 5.555/13 DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA SUPLEMENTAR MUNICIPAL. ALCANCE. [...] 1. Decorre da competência legislativa municipal suplementar (CRFB, art. 30, II, e CERJ, art. 358, II) Município editar lei que suplemente, no que couber, atos legislativos da competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, logo, daquela e do Estado do Rio de Janeiro, sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e sobre previdência social, proteção e defesa da saúde (incisos VIII e XII dos arts. 24 e 74, respectivamente das Constituições da República e fluminense); precedentes do STF. 2. Basta interesse também local, não uma especificidade municipal, para que Município possa exercer competência legislativa suplementar; o descabimento só se configura quando a lei municipal dispõe mais do que a ordem normativa a ser por ela suplementada ou quando a lei do Município entra em conflito com o ordenamento constitucional e/ou infraconstitucional federal e/ou estadual. [...] (TJ-RJ - ADI: 00527701420138190000 RJ 0052770-14.2013.8.19.0000, Relator: DES. FERNANDO FOCH DE LEMOS ARIGONY DA SILVA, Data de Julgamento: 05/05/2014, OE - SECRETARIA DO TRIBUNAL PLENO E ÓRGÃO ESPECIAL, Data de Publicação: 10/06/2014)

Portanto, como demonstram as decisões acima elencadas, embora as matérias de educação e ensino estejam presentes no art. 24 da CF/88 como competências legislativas concorrentes da União, do Distrito Federal e dos Estados, os Municípios também podem regular esses temas, desde que as normas não ultrapassem o interesse local e não conflitem com as normas de outras esferas federativas.

Quanto à iniciativa legislativa, a CF/88, com fundamento na tripartição dos poderes, disciplina a iniciativa parlamentar a partir do seu art. 61, que prevê: “A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

Dessa forma, ainda que a função legislativa tenha sido entregue ao Poder Legislativo, a CF/88 conferiu o poder de iniciativa a autoridades do Poder Executivo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e, inclusive, aos cidadãos diretamente.

Por ser norma genérica que atribui, indistintamente, o poder de iniciativa para a deflagração do processo legislativo a várias autoridades, a doutrina a nomeia de iniciativa comum ou iniciativa concorrente, constituindo-se como regra a ser observada em todos os âmbitos federativos, com fundamento no princípio da simetria. O § 1º do artigo 61, por sua vez, apresenta os casos em que o poder de iniciativa é privativo do Chefe do Executivo, para que se mantenha a harmonia e a independência entre os poderes. Ou seja, o objetivo real da restrição imposta no § 1º é a segurança do sistema de tripartição dos poderes constitucionais, de modo a que não haja interferências indevidas de um poder sobre o outro.

Dispõe o mencionado artigo 61, § 1º, da CF/88:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I – fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II – disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;

e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observadoo disposto no art. 84, VI; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

Dessas afirmações é possível extrair o entendimento de que a iniciativa para a deflagração do processo legislativo, em regra, é comum; a iniciativa privativa, por ser uma norma de natureza restritiva, é exceção, sendo “válida, nesse ponto, a lição da hermenêutica clássica, segundo a qual as exceções devem ser interpretadas de forma restritiva” (CAVALCANTE FILHO, 2013, p. 12). Portanto, as hipóteses de iniciativa reservada são apenas as previstas expressamente no texto constitucional: arts. 93, caput; 96, I e II; 127, § 2º; 51, IV; 52, XIII; 73, caput c/c 96; 61, § 1º; 165, I a III.

Sobre a proposição em análise, à primeira vista aparenta ser de iniciativa privativa do Prefeito de Guaíba, porquanto dispõe sobre medidas de proteção dos ambientes escolares e dos alunos, como a capacitação dos profissionais em noções básicas de primeiros socorros, a disponibilidade de kits de primeiros socorros nas salas de aula e a manutenção de salas com segurança reforçada para refúgio das pessoas em caso de ataques.

Ocorre que, em relação a essa matéria, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de apreciar o Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 878.911, com repercussão geral, declarando a constitucionalidade de obrigação similar, consistente na instalação de câmeras de monitoramento em escolas.

Na situação, o Prefeito do Rio de Janeiro ajuizou ação direta de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça Estadual para buscar a invalidação da Lei Municipal nº 5.616, de 16 de agosto de 2013, que tornava obrigatória a instalação de câmeras de monitoramento de segurança nas dependências de todas as escolas municipais. No âmbito do Tribunal de Justiça, o pedido foi julgado procedente, sendo declarada inconstitucional a lei municipal, com fundamento na existência de vício formal de iniciativa, pois estaria sendo usurpada a competência exclusiva do Chefe do Executivo para propor norma sobre o tema.

Todavia, levada a problemática ao STF por meio de recurso extraordinário – já que as normas sobre iniciativas reservadas na Constituição Estadual são de reprodução obrigatória da Constituição Federal (STF, RE nº 650.898/RS) –, o relator, Min. Gilmar Mendes, afirmou que “O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento no sentido de que as hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão taxativamente previstas no art. 61 da Constituição, que trata da reserva de iniciativa de lei do Chefe do Poder Executivo. Não se permite, assim, interpretação ampliativa do citado dispositivo constitucional, para abarcar matérias além daquelas relativas ao funcionamento e estruturação da Administração Pública, mais especificamente, a servidores e órgãos do Poder Executivo.

Prosseguindo no seu voto, o Min. Gilmar Mendes afirmou que “No caso em exame, a lei municipal que prevê obrigatoriedade de instalação de câmeras de segurança em escolas públicas municipais e cercanias não cria ou altera a estrutura ou a atribuição de órgãos da Administração Pública local nem trata do regime jurídico de servidores públicos”, motivo pelo qual não vislumbrou vício de inconstitucionalidade formal na legislação impugnada (Lei Municipal nº 5.616, de 16 de agosto de 2013).

O julgador afirmou que “a proteção aos direitos da criança e do adolescente qualifica-se como direito fundamental de segunda dimensão que impõe ao Poder Público a satisfação de um dever de prestação positiva destinado a todos os entes políticos que compõem a organização federativa do Estado brasileiro, nos termos do art. 227 da Constituição.” Por fim, no mérito do recurso extraordinário, votou pela procedência para reafirmar a jurisprudência do STF no sentido de que “não usurpa a competência privativa do Chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração Pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos (art. 61, § 1º, II, ‘a’, ‘c’ e ‘e’, da Constituição Federal).

O Recurso Extraordinário com Agravo (ARE nº 878.911), ao final, resultou na declaração de constitucionalidade da Lei Municipal nº 5.616/13, do Município do Rio de Janeiro, para tornar obrigatória a instalação de câmeras de monitoramento de segurança nas dependências e cercanias de todas as escolas públicas municipais. O entendimento, firmado em outubro de 2016 pelo STF, órgão responsável pela guarda da Constituição (artigo 102, caput, CF), ecoa por todos os tribunais brasileiros, especialmente porque manifestado em julgamento de recurso constitucional extraordinário, com o reconhecimento da repercussão geral (existência de questão relevante do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassa os interesses subjetivos do processo – artigo 1.035, § 1º, NCPC).

Tanto que, posteriormente ao julgamento da questão no STF, várias foram as ocasiões em que o Poder Judiciário dos Estados-Membros declarou a constitucionalidade de leis com o mesmo objetivo, qual seja, o de instituir a obrigatoriedade de instalação de câmeras de segurança em estabelecimentos de ensino. Vejam-se os precedentes do TJRS:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE VACARIA. LEI MUNICIPAL Nº 4.508/2019. CÂMERAS DE MONITORAMENTO DE SEGURANÇA NAS ESCOLAS PÚBLICAS MUNICIPAIS. VÍCIO DE INICIATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL NÃO VERIFICADA. DESPESA NÃO PREVISTA EM LEI ORÇAMENTÁRIA. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL NÃO VERIFICADA. 1. Lei nº 4.508/2019 do Município de Vacaria, de origem parlamentar, que dispõe sobre a instalação de câmeras de monitoramento de segurança nas escolas públicas municipais e cercanias. 2. Inexistência de interferência na política educacional do Município ou de invasão na forma de organização, gestão e atribuições da Secretaria de Educação ou de qualquer outro órgão do Executivo Municipal. Não constatada ingerência no regime jurídico dos agentes públicos da municipalidade. Proteção do interesse local atinente à segurança do corpo docente e discente. Preservação do patrimônio público municipal. Inexiste violação da iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Executivo ou da autonomia da Administração Municipal. Vício formal orgânico não verificado. 3. Precedente do STF. Tema 917. “Não usurpa competência privativa do Chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos”. [...] (Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70083337097, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eduardo Uhlein, J. em: 22-05-2020)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE PELOTAS. LEI MUNICIPAL Nº 6.704/2019. INSTALAÇÃO DE CÂMERAS DE SEGURANÇA NAS ESCOLAS DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL. PROJETO DE INICIATIVA DO LEGISLATIVO. VÍCIO FORMAL NÃO CONFIGURADO. POSSIBILIDADE DE CRIAÇÃO DE DESPESAS. PRECEDENTES. - A Lei Municipal nº 6.704/2019, de origem parlamentar, trata da obrigatoriedade de instalação de câmeras de monitoramento de segurança nas escolas públicas municipais. - Caso em que o diploma municipal não cria ou altera a estrutura ou a atribuição de órgãos da Administração Municipal, nem trata do regime jurídico de servidores públicos, de modo que inexiste vício de iniciativa. - Embora a lei municipal crie despesas para a Administração, uma vez que não trata das matérias elencadas no art. 61, §1º, inciso II, alíneas “a”, “c” e “e”, da Constituição Federal, e, por simetria, previstas no art. 60, inciso II, alíneas “a”, “b” e “d”, da Carta Estadual, não se verifica usurpação da competência reservada ao Chefe do Poder Executivo. Tema de Repercussão Geral nº 917 (ARE nº 878.911/RJ). - Ausência de dotação orçamentária prévia que não é capaz de tornar inconstitucional a norma, apenas impedindo sua aplicação no exercício financeiro em que foi promulgada. Precedentes. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA IMPROCEDENTE. UNÂNIME. (Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70083099556, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luís Dall'Agnol, Julgado em: 30-04-2020)

Idêntica solução parece ser aplicável às proposições que versem sobre matérias e obrigações análogas que envolvam, igualmente, a proteção da segurança escolar. Isso porque, além de estar justificada no princípio da proporcionalidade, sobretudo diante da série de atentados que frequentemente tem ocorrido em escolas, a proposição tem o mesmo objetivo das normas que impõem o dever de instalação de câmeras de monitoramento: a proteção da vida, saúde e segurança de todos os que convivem em espaços escolares, o que possui sólido fundamento na Constituição Federal (arts. 5º, caput, 6º, 227, 230, entre outros).

Veja-se, nesse sentido, que o Tribunal de Justiça de SP já teve a oportunidade de enfrentar a específica matéria em análise, tendo declarado a constitucionalidade das leis municipais que impõem a instalação de detectores de metais em escolas públicas:

DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei nº 5.352/2020, do Município de Araras, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a instalação de detectores de metais em estabelecimentos de ensino e dá outras providências – Matéria que não se encontra especificamente no rol de competência privativa do Poder Executivo – Norma que não ingressa na estrutura ou atribuição dos órgãos da Administração Pública e nem no regime jurídico dos servidores – Ausência de interferência na gestão administrativa – Inviabilidade de reconhecimento de inconstitucionalidade – Tema de repercussão geral estabelecido pelo STF (Tema 917) – Proteção integral de crianças e adolescentes que é direito fundamental de segunda geração, impondo prestação positiva de todos os entes políticos. (TJSP; Direta de Inconstitucionalidade 2171286-80.2021.8.26.0000; Relator (a): Moreira Viegas; Órgão Julgador: Órgão Especial; Tribunal de Justiça de São Paulo; Data do Julgamento: 26/01/2022; Data de Registro: 04/02/2022)

Portanto, principalmente no que tange à manutenção de salas com segurança reforçada para refúgio dos indivíduos em casos de ataques, entende-se aplicável a mesma solução oferecida pelo Supremo Tribunal Federal no ARE nº 878.911, considerando a similitude da obrigação e o idêntico propósito de sua criação.

Além disso, em relação às demais obrigações constantes na proposição (capacitação de funcionários em primeiros socorros e garantia de kits de primeiros socorros nas salas), tem-se que, além da aplicabilidade do entendimento acima exposto, sustenta-se a proposição, ainda, na sua natureza suplementar frente à Lei nº 13.722, de 4 de outubro de 2018, a qual já tornou obrigatórias as referidas medidas em todas as instituições escolares, atribuindo a sua responsabilidade, nos estabelecimentos públicos, aos respectivos sistemas de ensino:

Art. 1º Os estabelecimentos de ensino de educação básica da rede pública, por meio dos respectivos sistemas de ensino, e os estabelecimentos de ensino de educação básica e de recreação infantil da rede privada deverão capacitar professores e funcionários em noções de primeiros socorros.

§ 1º O curso deverá ser ofertado anualmente e destinar-se-á à capacitação e/ou à reciclagem de parte dos professores e funcionários dos estabelecimentos de ensino e recreação a que se refere o caput deste artigo, sem prejuízo de suas atividades ordinárias.

§ 2º A quantidade de profissionais capacitados em cada estabelecimento de ensino ou de recreação será definida em regulamento, guardada a proporção com o tamanho do corpo de professores e funcionários ou com o fluxo de atendimento de crianças e adolescentes no estabelecimento.

§ 3º A responsabilidade pela capacitação dos professores e funcionários dos estabelecimentos públicos caberá aos respectivos sistemas ou redes de ensino.

Art. 2º Os cursos de primeiros socorros serão ministrados por entidades municipais ou estaduais especializadas em práticas de auxílio imediato e emergencial à população, no caso dos estabelecimentos públicos, e por profissionais habilitados, no caso dos estabelecimentos privados, e têm por objetivo capacitar os professores e funcionários para identificar e agir preventivamente em situações de emergência e urgência médicas, até que o suporte médico especializado, local ou remoto, se torne possível.

§ 1º O conteúdo dos cursos de primeiros socorros básicos ministrados deverá ser condizente com a natureza e a faixa etária do público atendido nos estabelecimentos de ensino ou de recreação.

§ 2º Os estabelecimentos de ensino ou de recreação das redes pública e particular deverão dispor de kits de primeiros socorros, conforme orientação das entidades especializadas em atendimento emergencial à população.

Art. 3º São os estabelecimentos de ensino obrigados a afixar em local visível a certificação que comprove a realização da capacitação de que trata esta Lei e o nome dos profissionais capacitados.

Art. 4º O não cumprimento das disposições desta Lei implicará a imposição das seguintes penalidades pela autoridade administrativa, no âmbito de sua competência:

I – notificação de descumprimento da Lei;

II – multa, aplicada em dobro em caso de reincidência; ou

III – em caso de nova reincidência, a cassação do alvará de funcionamento ou da autorização concedida pelo órgão de educação, quando se tratar de creche ou estabelecimento particular de ensino ou de recreação, ou a responsabilização patrimonial do agente público, quando se tratar de creche ou estabelecimento público.

Art. 5º Os estabelecimentos de ensino de que trata esta Lei deverão estar integrados à rede de atenção de urgência e emergência de sua região e estabelecer fluxo de encaminhamento para uma unidade de saúde de referência.

Art. 6º O Poder Executivo definirá em regulamento os critérios para a implementação dos cursos de primeiros socorros previstos nesta Lei.

Art. 7º As despesas para a execução desta Lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, incluídas pelo Poder Executivo nas propostas orçamentárias anuais e em seu plano plurianual.

Art. 8º Esta Lei entra em vigor após decorridos 180 (cento e oitenta) dias de sua publicação oficial.

Ou seja, relativamente à realização de cursos de primeiros socorros e à aquisição de kits de primeiros socorros para as escolas, a proposição não está definindo novas obrigações aos órgãos do Poder Executivo, mas, na realidade, suplementando o regramento nacional já existente, de modo a conferir-lhe maior efetividade na perspectiva local. Em relação à obrigação de instalar salas com segurança reforçada, embora se trate de inovação legislativa, esta não dispõe sobre a estrutura ou as competências dos órgãos públicos, tampouco sobre o regime jurídico dos servidores públicos, aplicando-se, portanto, o mesmo entendimento estabelecido pelo STF no ARE nº 878.911, representativo do Tema nº 917.

3. Conclusão:

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa e não vinculante do parecer jurídico, a Procuradoria Jurídica, em conclusão, opina pela ausência de inconstitucionalidade manifesta do Projeto de Lei do Legislativo nº 054/2023, que está apto a seguir sua tramitação regimental. Sugere-se apenas a correção da numeração da Lei nº 13.722/2018, que equivocadamente consta como Lei nº 13.772 no § 4º do art. 2º e no parágrafo único do art. 5º. A referida correção pode se dar na própria Comissão de Constituição, Justiça Redação, por emenda, sem necessidade de substitutivo.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 9 de maio de 2023.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

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09/05/2023 18:19:37
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