PARECER JURÍDICO |
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"Dispõe sobre a entrada de alimentos nas escolas públicas e privadas municipais para pessoas com transtorno do espectro autista (TEA), diabetes e outras intolerâncias." 1. Relatório:O Ver. Florindo Motorista apresentou o Projeto de Lei do Legislativo nº 045/2023 à Câmara Municipal, objetivando dispor sobre a entrada de alimentos nas escolas públicas e privadas municipais para pessoas com transtorno do espectro autista (TEA), diabetes e outras intolerâncias. A proposição foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do art. 105 do Regimento Interno. 2. Mérito:De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros. A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único). A forma federativa de Estado adotada pelo Brasil na CF/88 implica, entre outras consequências, a distribuição de competências materiais e legislativas a todos os entes que a compõem, de acordo com o critério da predominância do interesse: as matérias de interesse geral devem ser atribuídas à União; as de interesse regional devem ser entregues aos Estados e ao Distrito Federal; as de interesse local, por fim, aos Municípios. No que concerne às competências legislativas, a CF/88 as divide em: a) privativa (art. 22): atende ao interesse nacional, atribuída apenas à União, com possibilidade de outorga aos Estados para legislar sobre pontos específicos, desde que por lei complementar; b) concorrente (art. 24, caput): atende ao interesse regional, atribuída à União, para legislar sobre normas gerais, e aos Estados e ao DF, para legislar sobre normas específicas; c) exclusiva (art. 30, I): atende ao interesse local, atribuída aos Municípios; d) suplementar (arts. 24, § 2º, e 30, II): garante aos Estados suplementar a legislação federal, no que couber, bem como aos Municípios fazer o mesmo em relação às leis federais e estaduais; e) remanescente estadual (art. 25, § 1º): aos Estados são atribuídas as competências que não sejam vedadas pela Constituição; f) remanescente distrital (art. 32, § 1º): ao DF são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e aos Municípios. Em relação à matéria de produção e consumo, a CF/88, de fato, estabelece a competência concorrente para a União legislar sobre normas gerais (art. 24, § 1º) e para os Estados e o Distrito Federal suplementá-las (art. 24, § 2º). Ocorre que o art. 30, incisos I e II, da CF/88 é claro ao assegurar aos Municípios a competência para legislar sobre assuntos de interesse local, bem como para suplementar, no que couber, a legislação federal e a estadual. Nesses termos, a interpretação adequada das regras constitucionais de distribuição de competências legislativas é a que garante ampla outorga de poderes aos Municípios, que só não podem criar normas que esbarrem na competência privativa do art. 22 da CF, atribuída rigorosamente à União, nada impedindo, por outro lado, que legislem com base no interesse local sobre matérias de competência concorrente, como produção e consumo. Tanto é que, caso não se admitisse aos Municípios a competência para legislar sobre matérias versadas no art. 24 da CF, não seria possível a formação dos típicos códigos sanitários (“proteção e defesa da saúde” – art. 24, XII), códigos ambientais (“proteção do meio ambiente” – art. 24, VI), códigos tributários e leis de ordenamento territorial (“direito tributário” e “direito urbanístico” – art. 24, I). Veja-se que, na jurisprudência, é acolhido o entendimento da competência legislativa “suplementar complementar” dos Municípios para legislarem sobre matérias versadas no art. 24 da CF/88, desde que no sentido de detalhar regras presentes na legislação federal e estadual, conferindo-lhes maior efetividade:
Portanto, conforme as decisões acima transcritas, em que pese a matéria de produção e consumo esteja presente no art. 24 da CF/88 como uma competência legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, não há dúvidas de que os Municípios, no estrito interesse local, podem legislar sobre o tema, atentando para não extrapolar o âmbito local e para não entrar em conflito com normas constitucionais ou infraconstitucionais. No que diz respeito à iniciativa para deflagrar o processo legislativo, as hipóteses de iniciativa privativa do Poder Executivo, que poderiam limitar o poder de iniciativa dos Vereadores, estão expressamente previstas na Constituição Federal, aplicadas por simetria aos Estados e Municípios. Dispõe o artigo 61, § 1º, da CF/88:
Para os fins do direito municipal, mais relevante ainda é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Nesse caso, menciona o art. 60 da Constituição Estadual:
No âmbito municipal, o artigo 119 da Lei Orgânica, à semelhança do artigo 60 da Constituição Estadual, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre certas matérias:
Verifica-se, neste caso, que não há qualquer limitação constitucional à propositura de projeto por iniciativa parlamentar sobre a matéria tratada, pois, com base nos fundamentos já expostos, não se constata qualquer hipótese de iniciativa privativa e/ou exclusiva. Sobre o aspecto material da proposição, observa-se que busca dispor sobre a liberação de entrada de quaisquer alimentos nas escolas públicas e privadas municipais para pessoas com transtorno do espectro autista, diabetes e outras intolerâncias alimentares, com a justificativa de que esses indivíduos possuem seletividade alimentar, isto é, restrição ao consumo de determinados alimentos, seja por seus componentes nutricionais, seja por suas qualidades sensoriais (textura, volume, quantidade, coloração, temperatura etc.). Nesse sentido, o direito à alimentação adequada tem status de direito fundamental de caráter social, disposto no art. 6º da CF/88 por via da Emenda Constitucional nº 64/2010, sendo que a marca distintiva dos direitos fundamentais sociais é a exigibilidade de prestações positivas materiais contra o Estado no sentido da sua implementação prática. Em síntese, compete ao Estado a criação e a viabilização de políticas que concretizem, efetivamente, o direito à alimentação adequada, inclusive nas escolas. Nessa mesma direção, a Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009, dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar, prevendo, entre as suas diretrizes, a universalidade e a alimentação escolar enquanto direito, visando a garantir segurança alimentar e nutricional aos alunos, com acesso de forma igualitária e em respeito às diferenças biológicas entre idades e condições de saúde daqueles que necessitem de atenção específica e/ou estejam em situação de vulnerabilidade social (art. 2º, incisos III e VI). Isto é, constitui diretriz da política nacional de alimentação nas instituições de ensino o respeito às variadas condições de saúde dos alunos que impliquem a atenção específica na formulação dos cardápios. Com isso, o planejamento da alimentação, de competência dos nutricionistas, deverá compreender a utilização de gêneros alimentícios básicos que atendam não só às referências nutricionais, aos hábitos alimentares, à cultura e à tradição alimentar da localidade, como também às condições de saúde específicas dos alunos, que demandem adequações no cardápio escolar. Inclusive, por efeito da Lei nº 12.982, de 28 de maio de 2014, foi expressamente estabelecida essa obrigação no art. 12, § 2º, da Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009, a evidenciar que, de fato, é impositivo o respeito às peculiaridades alimentares que resultam de condições específicas: “Para os alunos que necessitem de atenção nutricional individualizada em virtude de estado ou de condição de saúde específica, será elaborado cardápio especial com base em recomendações médicas e nutricionais, avaliação nutricional e demandas nutricionais diferenciadas, conforme regulamento.” A proposição pretende, na realidade, facilitar o exercício do direito à alimentação adequada por esses alunos com condições de saúde específicas, ao estabelecer que, por meio de laudos ou exames médicos apresentados à direção escolar, seja liberada a entrada de todo e qualquer alimento indicado para consumo, considerando que, ao que tudo indica, em muitas instituições ainda não são realizados os ajustes aos alunos com restrições alimentares. Esses alimentos, ressalta-se, serão levados pelos próprios alunos ou por seus responsáveis, com prévia indicação médica, sendo a escola apenas estimulada a liberar a entrada, ainda que, de fato, a garantia da alimentação adequada aos estudantes seja responsabilidade do Poder Público. Além disso, destaca-se que a Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, institui o “Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN”, fixando diretrizes acerca de políticas, planos, programas e ações com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada. Dispõe o art. 2º do referido diploma:
Veja-se, portanto, que é obrigação primária do Poder Público a concretização do direito humano e fundamental à alimentação adequada, essencial à realização prática de todos os demais direitos consagrados na ordem jurídica brasileira, devendo o Estado promover e respeitar as necessidades alimentares individuais. Nessa linha, a proposição bem atende ao objetivo constante no dispositivo legal, porquanto impõe às instituições de ensino o respeito às peculiares necessidades alimentares dos alunos, facilitando o exercício do direito à alimentação adequada pela liberação de alimentos indicados para consumo em prescrições médicas previamente apresentadas à direção escolar. Portanto, a juízo sumário desta Procuradoria Jurídica, o Projeto de Lei do Legislativo (PLL) nº 045/2023 é juridicamente viável, pois a matéria está compreendida nas competências legislativas municipais, a iniciativa legislativa é concorrente e a proposição é compatível com o interesse local e com as demais normas existentes em âmbito federal e estadual. Sugere-se, entretanto, o aprimoramento da redação legislativa, para que se torne mais clara relativamente à condição de apresentação do laudo médico: “Art. 1º Fica liberada a entrada de qualquer alimento nas escolas públicas e privadas do Município de Guaíba para pessoas com transtorno do espectro autista (TEA), diabetes e outras intolerâncias alimentares, mediante apresentação, à direção escolar, de laudo médico que demonstre a condição de saúde do estudante e a indicação da dieta e alimentos autorizados para consumo.” 3. Conclusão:Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa e não vinculante do parecer jurídico, a Procuradoria opina pela legalidade e regular tramitação do Projeto de Lei do Legislativo nº 045/2023, por inexistirem vícios de natureza material ou formal que impeçam a sua deliberação em Plenário. Sugere-se, porém, o aprimoramento da redação legislativa, para que se torne mais clara relativamente à condição de apresentação do laudo médico: “Art. 1º Fica liberada a entrada de qualquer alimento nas escolas públicas e privadas do Município de Guaíba para pessoas com transtorno do espectro autista (TEA), diabetes e outras intolerâncias alimentares, mediante apresentação, à direção escolar, de laudo médico que demonstre a condição de saúde do estudante e a indicação da dieta e alimentos autorizados para consumo.” É o parecer, salvo melhor juízo. Guaíba, 18 de abril de 2023. GUSTAVO DOBLER Procurador OAB/RS nº 110.114B Documento Assinado Digitalmente no padrão ICP-Brasil por:![]() 18/04/2023 17:15:29 |
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Documento publicado digitalmente por GUSTAVO DOBLER em 18/04/2023 ás 17:14:58. Chave MD5 para verificação de integridade desta publicação 43a244d3731dd8355f7f555e07a6f521.
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