Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 039/2023
PROPONENTE : Ver. Alex Medeiros
     
PARECER : Nº 107/2023
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui a Semana da Cultura Evangélica no âmbito do Município de Guaíba e dá outras providências"

1. Relatório:

O Vereador Alex Medeiros apresentou o Projeto de Lei do Legislativo nº 039/2023 à Câmara Municipal, objetivando instituir, no Município de Guaíba, a Semana da Cultura Evangélica. A proposta foi encaminhada à Procuradoria para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno. O proponente apresentou substitutivo, que retornou à Procuradoria Jurídica para análise de sua constitucionalidade e legalidade.

2. Mérito:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local;

II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV – criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI – manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

Alexandre de Moraes afirma que "interesse local refere-se aos interesses que disserem respeito mais diretamente às necessidades imediatas do município, mesmo que acabem gerando reflexos no interesse regional (Estados) ou geral (União)". (in Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 9ª ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 740).

O Projeto de Lei do Legislativo nº 039/2023 se insere, efetivamente, na definição de interesse local, já que institui, no Município de Guaíba, a Semana da Cultura Evangélica, a ser comemorada, anualmente, em semana do mês de dezembro. A fixação de datas comemorativas municipais atende ao interesse local porque busca homenagear setores, grupos ou atividades relevantes para a comunidade.

O entendimento desta Procuradoria Jurídica, refletido nos pareceres aos Projetos de Lei nº 099/2017, 152/2017, 127/2018, entre vários outros, tem sido na linha da constitucionalidade das propostas legislativas que instituem datas comemorativas alusivas a entidades ou movimentos religiosos, desde que ausente qualquer imposição ou autorização de responsabilidade ao Poder Público, sendo essa a compreensão mais alinhada à função orientadora do princípio da laicidade, que informa a ordem constitucional brasileira, tema complexo que envolve a apreciação de princípios constitucionais e de valores metajurídicos. O princípio da laicidade é previsto no artigo 19 da Constituição Federal 1988:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

É necessário amoldar o pluralismo religioso aos ditames democráticos e ao princípio da laicidade. Nesse sentido, a liberdade de expressão, e mais especificamente a liberdade religiosa, deve ter um tratamento distinto no âmbito privado, em que todos são livres para exercerem sua religiosidade como preferirem, e no âmbito público, em que a religião deve ser tratada com completa imparcialidade, sem ofender o pluralismo e o respeito à liberdade de crença e de religião de todos. O Estado, para salvaguardar o pluralismo religioso e a liberdade de religião, tem o dever de garantir que as instituições públicas e as políticas públicas permaneçam neutras, sem dar preferência a nenhuma religião ou culto. Portanto, a matéria pretendida não afronta a Constituição Federal de 1988, desde que a organização e a promoção de eventos não se deem por parte ou colaboração da Administração Pública.

O princípio da laicidade e neutralidade religiosa e ideológica do Estado pretende garantir o livre-arbítrio às pessoas para optar ou não entre os vários credos ou religiões existentes, ampliando, tanto quanto possível, estas liberdades nos diversos contextos sociais e institucionais, favorecendo o pluralismo de ideias e proibindo condutas tais como a doutrina forçada, a afirmação positiva de crenças ou a discriminação religiosa e/ou ideológica.[1] Assim, o Estado deve salvaguardar tanto a posição jurídica de preservação do princípio da laicidade quanto a posição jurídica de proteção ao direito de liberdade de crença.

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou que a defesa do princípio do secularismo consiste em um dos princípios fundamentais dos Estados em respeito aos direitos dos indivíduos, sendo considerada a laicidade necessária para a proteção do Estado Democrático. A criação de datas oficiais que promovam a comemoração de símbolos e/ou entidades religiosas pode ser considerada, nesses termos, contrária aos princípios do secularismo e da laicidade, se ocorresse favorecimento com recursos públicos a tais eventos.

Logo, considera-se que, em respeito ao direito fundamental à liberdade de crença e religião, o Estado possui deveres eminentemente negativos, devendo abster-se de incentivar ou mesmo promover determinadas religiões. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem compreendeu que a dimensão negativa da liberdade de consciência e de religião não se satisfaz apenas com a simples ausência de símbolos religiosos, mas contempla também as práticas e símbolos que reflitam crenças, religiões ou o ateísmo, devendo o Estado ter especial atenção e proteção para não expressar uma convicção religiosa. Essa abstenção evita ainda que o Poder Público adentre em eventuais tensões de ordem religiosa. Levando em conta tal dimensão negativa e o dever de não estabelecer preferências ou promoção de convicções religiosas, a jurisprudência de nossos tribunais tem sido no sentido de que nada impede a criação de data comemorativa com esse intuito, desde que não haja a colaboração ativa do Estado. Lapidar a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo quanto à lei que institui como evento cultural do Município de Suzano o Dia da Bíblia, estabelecendo, ainda, a inexistência de vício de competência ou de iniciativa:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei que institui como evento cultural oficial do município de Suzano o Dia da Bíblia – Ato normativo que cuida de matéria de interesse local – Mera criação de data comemorativa. Constitucionalidade reconhecida. Não ocorrência de vício de iniciativa do projeto de lei por vereador. Norma editada que não estabelece medidas relacionadas à organização da administração pública, nem cria deveres diversos daqueles genéricos ou mesmo despesas extraordinárias. Ação de Inconstitucionalidade julgada improcedente. Por força da Constituição, os municípios foram dotados de autonomia legislativa, que vem consubstanciada na capacidade de legislar sobre assuntos de interesse local, inclusive a fixação de datas comemorativas, e de suplementar a legislação federal e estadual no que couber (art. 30, I e II, da CF). A fixação de datas comemorativas por lei municipal não excede os limites da autonomia legislativa de que foram dotados os municípios." (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 0140772-62.2013.8.26.0000, Órgão Especial do Tribunal de Justiça de SP, Des. Rel. Antonio Carlos Malheiros, j. 23/10/2013).

Quanto à instituição de datas comemorativas alusivas a figuras ou símbolos religiosos, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal analisou a constitucionalidade de lei que instituiu o Dia do Evangélico, tendo assentado o entendimento de que não houve afronta ao princípio da laicidade. No julgamento da AC 20010110875766 DF pela 4ª Turma Cível, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal entendeu ser constitucional o feriado associando-lhe o exercício do direito ao culto religioso (art. 5º, VI, da CF/88). Da decisão extrai-se o seguinte ponto digno de nota, sublinhando, ainda, que o ordenamento jurídico brasileiro admite, também, a criação de feriados religiosos:

1 – A CONSTITUIÇÃO FEDERAL, NO ART. 19, I, VEDA A UNIÃO, OS ESTADOS, O DISTRITO FEDERAL E OS MUNICÍPIOS, ESTABELECER CULTOS RELIGIOSOS OU IGREJAS, SUBVENCIONÁ-LOS, EMBARAÇAR-LHES O FUNCIONAMENTO OU MANTER COM ELES OU SEUS REPRESENTANTES RELAÇÕES DE DEPENDÊNCIA OU ALIANÇA. 2 – NÃO PROÍBE QUE ALGUM DESSES ENTES DA FEDERAÇÃO, NO EXERCÍCIO DE SUA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA, INSTITUA DATA COMEMORATIVA, A EXEMPLO DO QUE FEZ O DISTRITO FEDERAL, QUANDO INSTITUIU O DIA DO EVANGÉLICO. 3 – NÃO É, PORTANTO, INCONSTITUCIONAL LEI ASSIM EDITADA. E OS ATOS COMETIDOS COM BASE NELA SÃO VÁLIDOS, COMO SÓI ACONTECER COM A COMEMORAÇÃO DO DIA DO EVANGÉLICO QUE SE CARACTERIZA EXERCÍCIO REGULAR DE UM DIREITO -- O DE CULTO RELIGIOSO (CF, ART. 5º, VI). E QUEM EXERCE UM DIREITO, SALVO ABUSO, NÃO CAUSA DANO A OUTREM (CC, ART. 160, I). 4 – VISLUMBRAR EM SITUAÇÕES QUE TAL PRECONCEITO OU DISCRIMINAÇÃO É EMPRESTAR RAZÃO À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA, PRAGA QUE, AO LONGO DA HISTÓRIA, TEM FEITO E CONTINUA FAZENDO INÚMERAS VÍTIMAS. 5 - APELAÇÃO NÃO PROVIDA.

Por outro lado, de se observar que instituir data comemorativa, religiosa, cívica ou atinente a alguma manifestação cultural, como ocorre com o carnaval, não configura discriminação ou preconceito. Sem qualquer razão de ser, portanto, a invocação da L. 9.459/97. Registre-se ainda que da mesma maneira que se instituiu, por lei, no âmbito do Distrito Federal, feriado no dia 30 de novembro, data comemorativa do dia do evangélico, vários são outros dias do ano, por tradição da religião católica, considerados feriados nacionais, em comemoração a algum dia santo, a exemplo dos feriados da Semana Santa, Corpus Christi, Nossa Senhora da Aparecida, Natal, para não dizer dos feriados municipais em comemoração ao dia da santa ou santo padroeiro da cidade. São dias dedicados à oração, peregrinação, meditação e reflexão dos católicos, mas que os crédulos de outras religiões, a exemplo dos evangélicos, não podem sentir constrangimento, vergonha, humilhação ou que estão sendo desmoralizados, porque obrigados a escutar referências a respeito da data comemorativa... De se observar, portanto, que a instituição do feriado religioso comemorativo ao dia do Evangélico está em perfeita harmonia com a Constituição Federal e com a legislação específica que rege a matéria. (TJ-DF AC 20010110875766 DF; 4ª Turma Cível, o TJ/DF. Data de publicação: 27/02/2002)

Além disso, especificamente sobre a instituição da Semana da Cultura Evangélica, identificou-se precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo no sentido da inconstitucionalidade da lei municipal instituidora da data comemorativa, porquanto impôs à Chefia do Poder Executivo a adoção de medidas específicas para a concretização do evento, inclusive por meio de disposições meramente autorizativas, cuja inconstitucionalidade é flagrante, conforme já se pacificou na jurisprudência:

6. No presente caso, evidente o caráter de ato concreto de administração da lei ora impugnada, porquanto esta fixa as datas em que o evento criado deve ocorrer e impõe à Chefia do Executivo Municipal que adote medidas específicas para que “Semana Municipal de Cultura Evangélica” possa ser realizada, estipulando, inclusive, expressamente, em seu artigo 9º: “As Diretorias Municipais de Educação, de Assistência Social, de Saúde do Município e Conselho Municipal de Cultura poderão participar do Evento.”. Note-se, ainda que os artigos 4º e 5º, estabelecem, respectivamente, que: “A semana de que trata esta lei será constituída de atividades, manifestações artísticas e culturais além de trabalhos evangelísticos desenvolvidos pela comunidade evangélica do Município de Cananéia, podendo ter a colaboração dos Poderes Legislativo e Executivo”; “Para a realização dos eventos constantes no art. 4º desta Lei o Poder Executivo poderá celebrar convênios com Igrejas e Entidades Evangélicas no Município de Cananéia SP”. 7. Note-se que, apesar de a lei, supostamente, apenas “autorizar” a participação do Poder Executivo, e respectivos Conselhos e Diretorias, no evento, bem como “autorizar” a celebração de convênios a norma utiliza-se das expressões “poderá” e “poderão” como se verá, a lei acaba por criar a obrigatoriedade do Executivo de celebrar convênios e participar diretamente, ou por meio de suas diretorias do evento em questão, matéria típica do Poder Executivo, ao qual cabe a adoção das providências necessárias à administração pública, a definição das prioridades de gestão, a teor do disposto nos incisos II e XIV do artigo 47 da Constituição Estadual, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo. [...] 8. Dessa forma, ao dispor sobre a organização do Executivo, impondo-lhe a obrigação de criar uma “Semana de Cultura Evangélica”, conferindo atribuições a Diretorias e Conselhos do Município, o Legislativo acabou por invadir esfera reservada àquele Poder para a prática de atos de gestão e organização administrativa, violando, assim, a separação de Poderes prevista constitucionalmente. [...] De rigor, portanto, a declaração de inconstitucionalidade da norma questionada, a qual, efetivamente cuidou de tema afeto à gestão e organização administrativa, deixando de observar ao disposto no artigo 24, parágrafo 2º, item 2, e no artigo 47, incisos II e XIV, todos da Constituição do Estado de São Paulo, com violação ao princípio da Separação dos Poderes, insculpido no artigo 5º da Constituição do Estado. (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2178941-16.2015.8.26.0000, Órgão Especial do Tribunal de Justiça de SP, Des. Rel. Márcio Bartoli, j. 27/01/2016)

Entretanto, como demonstra o trecho acima transcrito, a inconstitucionalidade da lei municipal é tão somente de natureza formal, por vício de iniciativa, pois a norma adentrou em matéria de organização administrativa, ao “autorizar” o Poder Executivo a organizar a citada data comemorativa, o que, sabe-se, é flagrantemente inconstitucional por violar, de todo modo, o rol de iniciativas privativas previsto no art. 61, § 1º, da CF/88 e, simetricamente, na Constituição Estadual de São Paulo.

O substitutivo em análise, porém, em momento algum dispôs sobre providências administrativas ou operacionais a serem adotadas pelo Poder Público para a organização da Semana da Cultura Evangélica. Na realidade, a norma tão somente estabelece os objetivos e as atividades a serem realizadas na data comemorativa, nada dispondo sobre a competência para a sua organização, que, em tal caso, não pode ser presumida do Estado.

Assim, por não possuir as mesmas disposições que, no Estado de São Paulo, foram consideradas determinantes para a declaração de inconstitucionalidade, a proposição legislativa em análise, a juízo desta Procuradoria, deve ser considerada viável tanto do ponto de vista material quanto formal, haja vista que não estabelece obrigações ao Poder Público e se limita a regrar os objetivos e as atividades da Semana da Cultura Evangélica, a ser empreendida pelas entidades sociais que capitanearem a sua iniciativa.

Portanto, em relação à matéria de fundo em análise, como não houve previsão de inclusão da data no calendário oficial de eventos municipais, nem qualquer disposição que, direta ou indiretamente, atribua ao Poder Público o dever ou a faculdade de contribuir financeiramente ou com bens ou recursos humanos para a organização de eventos, inexiste afronta ao princípio da laicidade, insculpido no art. 19, inciso I, da CF/88.

[1] Jónatas Machado (2013, p. 137) afirma que, a partir disso e dos princípios subjacentes ao Estado Constitucional, não se deduz uma absoluta neutralidade religiosa ou um dever de igualdade de tratamento de doutrinas, ritos ou símbolos.

3. Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria opina pela legalidade e regular tramitação do substitutivo ao Projeto de Lei do Legislativo nº 039/23, por inexistirem vícios de natureza material ou formal que impeçam a sua deliberação em Plenário.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 17 de abril de 2023.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

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17/04/2023 13:24:24
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