PARECER JURÍDICO |
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"Institui a Semana da Cultura Evangélica no âmbito do Município de Guaíba e dá outras providências" 1. Relatório:O Vereador Alex Medeiros apresentou o Projeto de Lei do Legislativo nº 039/2023 à Câmara Municipal, objetivando instituir, no Município de Guaíba, a Semana da Cultura Evangélica. A proposta foi encaminhada à Procuradoria para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno. O proponente apresentou substitutivo, que retornou à Procuradoria Jurídica para análise de sua constitucionalidade e legalidade. 2. Mérito:O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios. A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:
Alexandre de Moraes afirma que "interesse local refere-se aos interesses que disserem respeito mais diretamente às necessidades imediatas do município, mesmo que acabem gerando reflexos no interesse regional (Estados) ou geral (União)". (in Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 9ª ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 740). O Projeto de Lei do Legislativo nº 039/2023 se insere, efetivamente, na definição de interesse local, já que institui, no Município de Guaíba, a Semana da Cultura Evangélica, a ser comemorada, anualmente, em semana do mês de dezembro. A fixação de datas comemorativas municipais atende ao interesse local porque busca homenagear setores, grupos ou atividades relevantes para a comunidade. O entendimento desta Procuradoria Jurídica, refletido nos pareceres aos Projetos de Lei nº 099/2017, 152/2017, 127/2018, entre vários outros, tem sido na linha da constitucionalidade das propostas legislativas que instituem datas comemorativas alusivas a entidades ou movimentos religiosos, desde que ausente qualquer imposição ou autorização de responsabilidade ao Poder Público, sendo essa a compreensão mais alinhada à função orientadora do princípio da laicidade, que informa a ordem constitucional brasileira, tema complexo que envolve a apreciação de princípios constitucionais e de valores metajurídicos. O princípio da laicidade é previsto no artigo 19 da Constituição Federal 1988:
É necessário amoldar o pluralismo religioso aos ditames democráticos e ao princípio da laicidade. Nesse sentido, a liberdade de expressão, e mais especificamente a liberdade religiosa, deve ter um tratamento distinto no âmbito privado, em que todos são livres para exercerem sua religiosidade como preferirem, e no âmbito público, em que a religião deve ser tratada com completa imparcialidade, sem ofender o pluralismo e o respeito à liberdade de crença e de religião de todos. O Estado, para salvaguardar o pluralismo religioso e a liberdade de religião, tem o dever de garantir que as instituições públicas e as políticas públicas permaneçam neutras, sem dar preferência a nenhuma religião ou culto. Portanto, a matéria pretendida não afronta a Constituição Federal de 1988, desde que a organização e a promoção de eventos não se deem por parte ou colaboração da Administração Pública. O princípio da laicidade e neutralidade religiosa e ideológica do Estado pretende garantir o livre-arbítrio às pessoas para optar ou não entre os vários credos ou religiões existentes, ampliando, tanto quanto possível, estas liberdades nos diversos contextos sociais e institucionais, favorecendo o pluralismo de ideias e proibindo condutas tais como a doutrina forçada, a afirmação positiva de crenças ou a discriminação religiosa e/ou ideológica.[1] Assim, o Estado deve salvaguardar tanto a posição jurídica de preservação do princípio da laicidade quanto a posição jurídica de proteção ao direito de liberdade de crença. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou que a defesa do princípio do secularismo consiste em um dos princípios fundamentais dos Estados em respeito aos direitos dos indivíduos, sendo considerada a laicidade necessária para a proteção do Estado Democrático. A criação de datas oficiais que promovam a comemoração de símbolos e/ou entidades religiosas pode ser considerada, nesses termos, contrária aos princípios do secularismo e da laicidade, se ocorresse favorecimento com recursos públicos a tais eventos. Logo, considera-se que, em respeito ao direito fundamental à liberdade de crença e religião, o Estado possui deveres eminentemente negativos, devendo abster-se de incentivar ou mesmo promover determinadas religiões. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem compreendeu que a dimensão negativa da liberdade de consciência e de religião não se satisfaz apenas com a simples ausência de símbolos religiosos, mas contempla também as práticas e símbolos que reflitam crenças, religiões ou o ateísmo, devendo o Estado ter especial atenção e proteção para não expressar uma convicção religiosa. Essa abstenção evita ainda que o Poder Público adentre em eventuais tensões de ordem religiosa. Levando em conta tal dimensão negativa e o dever de não estabelecer preferências ou promoção de convicções religiosas, a jurisprudência de nossos tribunais tem sido no sentido de que nada impede a criação de data comemorativa com esse intuito, desde que não haja a colaboração ativa do Estado. Lapidar a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo quanto à lei que institui como evento cultural do Município de Suzano o Dia da Bíblia, estabelecendo, ainda, a inexistência de vício de competência ou de iniciativa:
Quanto à instituição de datas comemorativas alusivas a figuras ou símbolos religiosos, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal analisou a constitucionalidade de lei que instituiu o Dia do Evangélico, tendo assentado o entendimento de que não houve afronta ao princípio da laicidade. No julgamento da AC 20010110875766 DF pela 4ª Turma Cível, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal entendeu ser constitucional o feriado associando-lhe o exercício do direito ao culto religioso (art. 5º, VI, da CF/88). Da decisão extrai-se o seguinte ponto digno de nota, sublinhando, ainda, que o ordenamento jurídico brasileiro admite, também, a criação de feriados religiosos:
Além disso, especificamente sobre a instituição da Semana da Cultura Evangélica, identificou-se precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo no sentido da inconstitucionalidade da lei municipal instituidora da data comemorativa, porquanto impôs à Chefia do Poder Executivo a adoção de medidas específicas para a concretização do evento, inclusive por meio de disposições meramente autorizativas, cuja inconstitucionalidade é flagrante, conforme já se pacificou na jurisprudência:
Entretanto, como demonstra o trecho acima transcrito, a inconstitucionalidade da lei municipal é tão somente de natureza formal, por vício de iniciativa, pois a norma adentrou em matéria de organização administrativa, ao “autorizar” o Poder Executivo a organizar a citada data comemorativa, o que, sabe-se, é flagrantemente inconstitucional por violar, de todo modo, o rol de iniciativas privativas previsto no art. 61, § 1º, da CF/88 e, simetricamente, na Constituição Estadual de São Paulo. O substitutivo em análise, porém, em momento algum dispôs sobre providências administrativas ou operacionais a serem adotadas pelo Poder Público para a organização da Semana da Cultura Evangélica. Na realidade, a norma tão somente estabelece os objetivos e as atividades a serem realizadas na data comemorativa, nada dispondo sobre a competência para a sua organização, que, em tal caso, não pode ser presumida do Estado. Assim, por não possuir as mesmas disposições que, no Estado de São Paulo, foram consideradas determinantes para a declaração de inconstitucionalidade, a proposição legislativa em análise, a juízo desta Procuradoria, deve ser considerada viável tanto do ponto de vista material quanto formal, haja vista que não estabelece obrigações ao Poder Público e se limita a regrar os objetivos e as atividades da Semana da Cultura Evangélica, a ser empreendida pelas entidades sociais que capitanearem a sua iniciativa. Portanto, em relação à matéria de fundo em análise, como não houve previsão de inclusão da data no calendário oficial de eventos municipais, nem qualquer disposição que, direta ou indiretamente, atribua ao Poder Público o dever ou a faculdade de contribuir financeiramente ou com bens ou recursos humanos para a organização de eventos, inexiste afronta ao princípio da laicidade, insculpido no art. 19, inciso I, da CF/88. [1] Jónatas Machado (2013, p. 137) afirma que, a partir disso e dos princípios subjacentes ao Estado Constitucional, não se deduz uma absoluta neutralidade religiosa ou um dever de igualdade de tratamento de doutrinas, ritos ou símbolos. 3. Conclusão:Diante do exposto, a Procuradoria opina pela legalidade e regular tramitação do substitutivo ao Projeto de Lei do Legislativo nº 039/23, por inexistirem vícios de natureza material ou formal que impeçam a sua deliberação em Plenário. É o parecer, salvo melhor juízo. Guaíba, 17 de abril de 2023. GUSTAVO DOBLER Procurador OAB/RS nº 110.114B Documento Assinado Digitalmente no padrão ICP-Brasil por:![]() 17/04/2023 16:24:24 |
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Documento publicado digitalmente por GUSTAVO DOBLER em 17/04/2023 ás 16:23:48. Chave MD5 para verificação de integridade desta publicação d2fb707f982f213834d19318d935763c.
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