Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 012/2023
PROPONENTE : Ver. Marcos SJ
     
PARECER : Nº 042/2023
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Altera o art. 2º da Lei Municipal nº 3.783, de 13 de maio de 2019, que institui, no Município de Guaíba, o Dia Municipal da Fibromialgia e garante a utilização de filas preferenciais e de vagas de estacionamento preferenciais aos portadores da doença"

1. Relatório:

O Vereador Marcos SJ apresentou à Câmara Municipal de Guaíba o Projeto de Lei do Legislativo nº 012/23, que altera o art. 2º da Lei Municipal nº 3.783, de 13 de maio de 2019, que institui, no Município de Guaíba, o Dia Municipal da Fibromialgia e garante a utilização de filas preferenciais e de vagas de estacionamento preferenciais aos portadores da doença. A proposta foi encaminhada à Procuradoria Jurídica pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno.

2. Mérito:

De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

Efetivamente, a proposição encontra respaldo no que diz respeito à autonomia e à competência legislativa do Município, insculpidas no artigo 18 da CF/88:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local;

II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV – criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI – manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A alteração pretendida se insere na definição de interesse local, pois diz respeito ao âmbito do Município de Guaíba, além de se referir à competência constitucional de legislar sobre assuntos de interesse local, entre os quais está o cuidado com a saúde e a promoção da assistência pública, na forma do art. 23, II, da CF/88.

A iniciativa para o processo legislativo, por sua vez, também está adequada, visto que o Projeto de Lei do Legislativo nº 012/23 dispõe sobre a promoção da dignidade humana das pessoas portadoras de fibromialgia, doença incapacitante que, em variadas legislações de outros entes, é equiparada às deficiências, matéria sobre a qual já existem diversas iniciativas que reconhecem direitos a comodidades especiais, como o atendimento preferencial e as vagas de estacionamento exclusivas.

Nesse sentido, veja-se o art. 60 da Constituição Estadual do RS, acerca das hipóteses de iniciativa legislativa privativa do Chefe do Poder Executivo:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I – fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 67, de 17/06/14)

II – disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Como se verifica da leitura da alínea “d” do inciso II do dispositivo citado, são de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo as proposições que tratem da criação, da estruturação e de atribuições das secretarias e demais órgãos da Administração Pública. Neste caso, porém, embora a pretendida nova redação do art. 2º da Lei Municipal nº 3.783/19 esteja aparentemente criando nova atribuição, não se trata, na realidade, de algo novo, mas reproduzido de normas da esfera federal e de incidência nacional: os arts. 1º e 2º da Lei nº 10.048, de 8 de novembro de 2000, já garantem às pessoas com deficiência o direito ao atendimento prioritário em repartições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos, de modo que o efeito prático da proposição apresentada é estender às pessoas portadoras de fibromialgia o mesmo direito, equiparando-se, para essa finalidade, às pessoas com deficiência.

Por esse motivo, vislumbrando-se a prévia existência de norma que institui, para as pessoas com deficiência, o direito ao atendimento preferencial em repartições públicas, é de se reconhecer que a proposição, nesse ponto, não está a criar nova atribuição aos órgãos da Administração Pública, dado que a obrigação já existe por efeito da normativa federal. O que se está a concretizar, efetivamente, é a dignidade humana das pessoas com fibromialgia pelo tratamento equivalente às pessoas com deficiência, o que já se identifica em legislações de outros entes federados. Destarte, a proposição está apropriada quanto à iniciativa.

Quanto à matéria de fundo, também não há óbices. Isso porque o texto constitucional determina a obrigação do Estado, em sentido amplo, de oferecer condições de acessibilidade às pessoas com deficiência (aqui equivalentes às pessoas com fibromialgia), de modo a eliminar e/ou reduzir as barreiras que impossibilitam o pleno exercício das suas garantias.

O Decreto nº 6.949, de 25/08/2009, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo – norma que, aliás, possui o status de emenda constitucional –, prevê, no artigo 4º, 1, que “Os Estados Partes se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência”, comprometendo-se a: “a) Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção.”

A mesma convenção internacional, que integra o texto constitucional por ter sido aprovada na forma do art. 5º, § 3º, da CF/88, define pessoas com deficiência como “aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.” (artigo 1).

Da mesma forma, no âmbito infraconstitucional, a Lei nº 13.146/2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, estabelece, no artigo 2º: “Considera-se pessoa com deficiência aquele que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” Prevê, ainda, o art. 8º do Estatuto, a respeito dos direitos básicos das pessoas com deficiência:

Art. 8º É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.

Desse modo, a partir da introdução, na Constituição Federal de 1988, de todas as normas previstas na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, o conceito de pessoa com deficiência foi ampliado, abrangendo não só as condições previstas no art. 5º do Decreto nº 5.296/04, como também todo impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial que possa obstruir a participação da pessoa na sociedade em igualdade de condições com os demais.

A definição, como se vê, é aberta, permitindo que os portadores de fibromialgia possam ser enquadrados como pessoas com deficiência, dada a natureza incurável da síndrome, que limita no aspecto físico a participação das pessoas na sociedade em igualdade de condições. Conforme dados médicos retirados da internet[1],

Fibromialgia caracteriza-se por dor crônica que migra por vários pontos do corpo e se manifesta especialmente nos tendões e nas articulações. Trata-se de uma patologia relacionada com o funcionamento do sistema nervoso central e o mecanismo de supressão da dor que atinge, em 90% dos casos, mulheres entre 35 e 50 anos.

A dor da fibromialgia pode ser intensa e incapacitante, mas não provoca inflamações nem deformidades físicas. Entretanto, pode estar associada a outras doenças reumatológicas, o que pode confundir o diagnóstico.

Há ainda, na jurisprudência, o reconhecimento desse conceito aberto de pessoa com deficiência, construído a partir da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, extensível aos portadores de fibromialgia:

PROCESSUAL CIVIL. SERVIDORA PÚBLICA, PORTADORA DE FIBROMIALGIA. REDUÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO. POSSIBILIDADE. PERÍCIA MÉDICA REALIZADA POR PERITO REGULARMENTE INSCRITO. DESNECESSIDADE DE REALIZAÇÃO POR JUNTA OFICIAL. COMINAÇÃO DE MULTA DIÁRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. POSSIBILIDADE. 1. Apelação interposta em face de sentença que antecipou os efeitos da tutela, reduzindo a jornada de trabalho da autora para 6 (seis) horas diárias, independentemente de compensação e sem a redução da remuneração. 2. Hipótese em que a perícia realizada foi robusta o suficiente para solver as dúvidas quanto à condição de saúde da apelada, portadora de Fibromialgia. 3. Laudo pericial que confirmou a tese veiculada na inicial, atestando que a autora realmente sofre impedimento de longo prazo, com prejuízo de participação plena e efetiva na sociedade, com a necessidade de redução da carga de trabalho para o controle da patologia. 4. Considerando-se o novo conceito interpretativo de pessoa com deficiência, inaugurado pela Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência, internalizado com status de norma constitucional, conclui-se que a autora é pessoa com deficiência, pelo menos para o fim de obter a redução da jornada de trabalho, independentemente de compensação e sem a redução da remuneração, para seis horas diárias, conforme o disposto no art. 98, parágrafo 2º, da Lei n. 8.112/1991. 5. A perícia realizada por profissional devidamente inscrito, substitui a realização da mesma perícia pela junta oficial. Precedentes. 6. A aplicação de multa diária tem o condão de coagir a parte à prestação da obrigação de fazer ou não fazer, a qual deveria ter sido realizada espontaneamente. A astreinte não tem caráter punitivo, mas sim coativo, não havendo óbice à sua aplicação face à Fazenda Pública. Não havendo resistência ao cumprimento da pretensão, não haverá a cobrança de multa. 7. Apelação improvida. (PROCESSO: 00009120820134058102, AC574252/CE, DESEMBARGADOR FEDERAL GERALDO APOLIANO, Terceira Turma, JULGAMENTO: 26/02/2015, PUBLICAÇÃO: DJE 04/03/2015 - Página 90).

Portanto, à luz dos fundamentos expostos, é possível reconhecer aos portadores de fibromialgia a condição de pessoas com deficiência, estendendo-lhes o direito de receber atendimento preferencial e a utilização de vaga de estacionamento privativa, inclusive nos órgãos públicos – por iniciativa legislativa parlamentar –, dados os efeitos decorrentes dos arts. 1º e 2º da Lei nº 10.048/2000, que já estabelecem o direito às pessoas com deficiência, de modo que, assim sendo, não se trata de criação de nova atribuição aos órgãos públicos.

[1] https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/fibromialgia/

3. Conclusão:

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa e não vinculante do parecer jurídico, a Procuradoria opina pela legalidade e regular tramitação do Projeto de Lei do Legislativo nº 012/2023, por inexistirem vícios de natureza material ou formal que impeçam a sua deliberação em Plenário.

Guaíba, 16 de fevereiro de 2023.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

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