Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 009/2023
PROPONENTE : Ver. Manoel Eletricista
     
PARECER : Nº 040/2023
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui o programa "Criança Reciclando" nas escolas de ensino municipal"

1. Relatório:

 O Vereador Manoel Eletricista (PSDB) apresentou o Projeto de Lei do Legislativo nº 009/2023 à Câmara Municipal, o qual “Institui o programa "Criança Reciclando" nas escolas de ensino municipal”. A proposição foi encaminhada a esta Procuradoria Jurídica pela Presidência para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno.

2. Mérito:

Preliminarmente, verifica-se que a norma inscrita no artigo 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido – e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer todo o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução é efetuada mediante despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

Quanto ao conteúdo da matéria proposta, verifica-se que pretende criar programa sob a responsabilidade do Poder Executivo Municipal, no sentido de prever práticas sustentáveis, como coleta seletiva e instalação de lixeiras, nas escolas municipais.

Não obstante ser proposta meritória, do ponto de vista formal a matéria invade de modo indevido a chamada reserva de administração, constante no art. 61, § 1º, da Constituição Federal de 1988, substância central do princípio da separação de poderes inscrito no art. 2º da CF/88, ao dispor a respeito de programa que deve ser implementado pelo Poder Executivo para a separação de lixo nas instituições da rede pública municipal e conscientização dos estudantes quanto à correta separação dos resíduos, o que cabe exclusivamente ao Prefeito definir, através das políticas públicas a seu cargo.

O Projeto de Lei nº 009/2023, ora em análise, vai de encontro, ainda, ao disposto no art. 60, II, “d”, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, bem como afronta o previsto no art. 82, VII, do mesmo diploma:

Art. 60 – São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

 

Art. 82 – Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e art. 10 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul):

A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental. ("Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, p. 438/439).

A proposição trata, eminentemente, de disciplina tipicamente administrativa, a qual constitui atribuição político-administrativa do Prefeito, caracterizando inconstitucionalidade material e formal. Não cabe à lei de iniciativa parlamentar estabelecer a execução de programa sob a responsabilidade do Poder Executivo para a separação de lixo nas escolas, por se tratar de matéria de competência privativa do Prefeito, na esfera de sua discricionariedade. Aliás, veja-se precedentes da jurisprudência relacionados ao caso em análise:

TJSP. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Pretensão fundada na violação, pelas normas legais, da Lei Orgânica Municipal, da Constituição Federal e da Constituição Estadual – Descabimento, pelos dois primeiros motivos – O parâmetro de controle de constitucionalidade de lei municipal perante Tribunal de Justiça Estadual é a norma constitucional estadual, apenas – Ação conhecida e julgada apenas no respeitante às normas constitucionais estaduais, ditas contrariadas. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei nº 3.487, de 16 de julho de 2015, que "dispõe sobre a instalação de lixeiras com cor indicativas da coleta seletiva em pontos de ônibus em todo Município de Santana de Parnaíba, e dá outras providências" – Lei de origem parlamentar que estabelece tarefas típicas de administração e as impõe ao Poder Executivo, ao qual é constitucionalmente reservada a iniciativa legislativa, assim violando o princípio da separação de poderes (arts. 5º, caput, §§ 1º e 2º, 47, II, XI, XIV e XIX, "a", da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta e do art. 29 da Constituição Federal) – Não bastasse, a lei impugnada cria despesas sem especificar a respectiva fonte de custeio, a que refere genericamente (art. 25 da Constituição Estadual) – Inconstitucionalidade decretada. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (TJSP – Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2212964-85.2015.8.26.0000, Relator: Des. João Carlos Saletti, Data do Julgamento: 16/03/2016).

STF. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ALAGONA N. 6.153, DE 11 DE MAIO DE 2000, QUE CRIA O PROGRAMA DE LEITURA DE JORNAIS E PERIÓDICOS EM SALA DE AULA, A SER CUMPRIDO PELAS ESCOLAS DA REDE OFICIAL E PARTICULAR DO ESTADO DE ALAGOAS. 1. Iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo Estadual para legislar sobre organização administrativa no âmbito do Estado. 2. Lei de iniciativa parlamentar que afronta o art. 61, § 1º, inc. II, alínea e, da Constituição da República, ao alterar a atribuição da Secretaria de Educação do Estado de Alagoas. Princípio da simetria federativa de competências. 3. Iniciativa louvável do legislador alagoano que não retira o vício formal de iniciativa legislativa. Precedentes. 4. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente (ADI n. 2.329, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, Pleno, DJe de 25.6.10).

TJRS. Ementa: ACAO DIRETA DE INCOSNTITUCIONALIDADE. LEI 3004, DE 27 DE JANEIRO DE 2000, MUNICIPIO DE ESTEIO. MOSTRA-SE EM DESACORDO COM A CARTA ESTADUAL A LEI MUNICIPAL QUE DETERMINA AS CONDICOES DA COLETA DE LIXO NO AMBITO DAS ESCOLAS DA REDE MUNICIPAL, POR OFENSA S REGRAS QUE ESTABELECEM O PRINCIPIO DA SEPARACAO DOS PODERES E A ATRIBUICAO PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO DE DISPOR SOBRE A ORGANIZACAO E O FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRACAO PUBLICA. ACAO JULGAD PROCEDENTE. 11FLS. D(Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70003855434, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Pedro Pires Freire, Julgado em: 02-12-2002). Assunto: 1. LEI. INCONSTITUCIONALIDADE. ACAO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. 2. LEI MUNICIPAL. DISPOSICAO SOBRE A COLETA SELETIVA DE LIXO. ESTABELECIMENTO DE ENSINO. INICIATIVA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. FALTA DE INICIATIVA DO PREFEITO. EFEITOS. 3. ORIGEM: ESTEIO.. Referência legislativa: LM-3004 DE 2000 (ESTEIO) CE-8 DE 1989 CE-10 DE 1989 CE-60 INC-II LET- D DE 1989 CE-61 INC-I DE 1989 CE-82 INC-VII INC-XXII DE 1989 CE-149 DE 1989 CE-154 INC-I PAR-1 DE 1989 LM-2411 DE 1995 (ESTEIO)

O Projeto de Lei do Legislativo nº 009/2023 apresenta, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frente à Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto às atribuições dos órgãos públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Por todo o exposto, ainda que o projeto possua alta carga de relevância social, indubitavelmente, ao pretender tratar da matéria que diz respeito à organização administrativa da Secretaria de Educação, invadiu esfera de competência atribuída ao Chefe do Poder Executivo pela carta constitucional.

Nada impede, porém, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no art. 114 do Regimento Interno, para que, pela via política, o Prefeito implemente a medida veiculada.

3. Conclusão:

 Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver à autora a proposição em epígrafe, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, da CF/88; arts. 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS) e de inconstitucionalidade material por afronta ao princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF/88; art. 5º da CE/RS), bem como afronta ao art. 119, II, da Lei Orgânica Municipal. Sugere-se a remessa de indicação ao Poder Executivo para que, pela via política, implemente a medida, diante do seu mérito.

É o parecer.

Guaíba, 15 de fevereiro de 2023.

 

 

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador-Geral

OAB/RS 107.136

 

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15/02/2023 14:40:52
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