Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 151/2022
PROPONENTE : Ver. Manoel Eletricista
     
PARECER : Nº 412/2022
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a obrigatoriedade da execução dos serviços da rega das estradas municipais não pavimentadas da zona rural do município de Guaíba, em decorrência da elevação dos níveis de poeira"

1. Relatório:

O Vereador Manoel Eletricista apresentou o Projeto de Lei nº 151/2022 à Câmara Municipal, que dispõe sobre a obrigatoriedade da execução dos serviços de rega das estradas municipais não pavimentadas da zona rural do Município de Guaíba, em virtude da elevação dos níveis de poeira. A proposição foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.

2. Mérito:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local;

II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV – criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI – manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A lei que se pretende criar se insere, efetivamente, na definição de interesse local, na medida em que veicula obrigação a ser cumprida no estrito âmbito do Município de Guaíba, regrando o uso do solo urbano para atender às especificidades locais (art. 30, VIII, da CF/88), notadamente para solucionar o problema da poeira nas estradas rurais não pavimentadas.

No entanto, verifica-se que a proposição está acometida por vício de inconstitucionalidade formal e material, devendo ser devolvida ao proponente. Isso porque, inicialmente, a matéria invade a chamada reserva de administração do Chefe do Executivo, constante no art. 61, § 1º, da CF/88, substância central do princípio da separação de poderes, inscrito no art. 2º da CF/88, ao dispor sobre medidas que devem ser implementadas nas estradas rurais guaibenses, cuja administração é do Prefeito, conforme disposto na Lei Orgânica Municipal:

Art. 52. Compete privativamente ao Prefeito:

[...]

XXII – administrar os bens e as rendas municipais, promover o lançamento, a fiscalização e a arrecadação de tributos;

Art. 92. Cabe ao Prefeito a administração dos bens municipais, respeitada a competência da Câmara quanto àqueles utilizados em seus serviços.

Nessa linha, o art. 99, inc. I, do Código Civil complementa o entendimento exposto ao definir que são bens públicos de uso comum do povo, entre outros, as estradas, de forma que, sendo públicos, sua administração cabe ao Prefeito, como disposto na Lei Orgânica. Logo, o Projeto de Lei do Legislativo nº 151/2022, ora em análise, vai de encontro ao disposto nos arts. 60, II, “d”, e 82, VII, da Constituição Estadual, a seguir transcritos:

Art. 60 – São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II – disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Art. 82 – Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII – dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Ainda a respeito da iniciativa, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e art. 10 da Constituição Estadual):

A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental. ("Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, págs. 438/439).

A proposta trata de disciplina tipicamente administrativa, que constitui atribuição político-administrativa do Prefeito, configurando inconstitucionalidade material e formal. Não cabe à lei de iniciativa parlamentar definir medidas de redução da poeira em estradas rurais, por tratar-se de matéria de competência privativa e discricionária do Prefeito.

O Projeto de Lei nº 151/22 apresenta, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frente à Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto à gestão dos serviços públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I – criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II – organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III – servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV – criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

No que diz respeito à inconstitucionalidade material, verifica-se que a proposição ofende o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no art. 225 da CF/88, a seguir transcrito, tendo em vista que determina a utilização de água, inclusive por meio de caminhão pipa, para a execução de rega em toda a extensão do percurso realizado pelos caminhões no qual haja residências, com intervalos regulares e suficientes para que não ocorra a elevação do nível de poeira (arts. 1º e 2º), providência que não está de acordo com o princípio da proporcionalidade que rege a interpretação constitucional:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;

III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;

V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;

VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

VIII – manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis destinados ao consumo final, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes, especialmente em relação às contribuições de que tratam a alínea "b" do inciso I e o inciso IV do caput do art. 195 e o art. 239 e ao imposto a que se refere o inciso II do caput do art. 155 desta Constituição. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 123, de 2022)

§ 2º Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.

§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

§ 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

§ 5º São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.

§ 6º As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.

§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 96, de 2017)

A medida é desproporcional sobretudo porque, no aspecto da necessidade – elemento do princípio da proporcionalidade –, não é a solução mais conciliadora entre os bens jurídicos envolvidos (saúde/moradia x meio ambiente), impondo ônus excessivo às empresas no sentido de realizar a rega das estradas com água em intervalos regulares e suficientes para que não haja elevação do nível de poeira. Em outras palavras, a proposição objetiva atribuir o controle das condições de trafegabilidade das vias rurais à iniciativa privada, exigindo que os empresários custeiem o serviço e utilizem um bem natural conhecidamente finito para tentar solucionar um problema que não é de sua responsabilidade, mas do Município de Guaíba.

A efetividade da solução também é bastante questionável, visto que, como noticia a imprensa, a dispersão de água somente evita a poeira enquanto a estrada estiver molhada, sendo que, “em dias quentes de verão, manter uma estrada úmida seria uma empreitada que tomaria o dia todo. Um sistema de irrigação teria de ser usado, o que gastaria litros de água e, portanto, não seria a solução mais prática”.[1] Já existem soluções mais tecnológicas noticiadas na internet para o controle do nível de poeira nas estradas rurais, a exemplo de determinadas fórmulas minerais, pastas de óleo ou outros produtos químicos capazes de resolver com maior efetividade o problema, sendo a utilização de água uma saída ineficiente mesmo a curto prazo, além de excessivamente onerosa e não sustentável.

Destaca-se, ainda, que a Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que define a Política Nacional de Recursos Hídricos, buscou racionalizar o consumo de água ao considerá-la como um bem de domínio público, dotado de valor econômico e de disponibilidade limitada, fundamentos que delineiam todas as políticas públicas envolvendo recursos hídricos, sustentadas, também, em princípios jurídico-ambientais, como no princípio do usuário-pagador, que impõe a cobrança de contribuição onerosa àquele que detém outorga para uso e exploração de água, com vistas a impulsionar um consumo mais consciente:

Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:

I – a água é um bem de domínio público;

II – a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;

III – em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais;

IV – a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas;

V – a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos;

VI – a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades.

Portanto, entende-se que a obrigação pretendida pelo autor da proposta, além de formalmente inconstitucional, por ser de iniciativa privativa do Chefe do Executivo Municipal, é materialmente inconstitucional por violação ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo desproporcional em vista da disponibilidade de soluções mais efetivas de controle do nível de poeira em estradas não pavimentadas, que não demandam a utilização de recursos naturais na proporção que será necessária para dar conta do problema com o método escolhido.

[1] https://www.ehow.com.br/evitar-poeira-estradas-cascalho-estrategia_68723/

3. Conclusão:

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa e não vinculante do parecer jurídico, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela devolução ao autor da proposta em epígrafe (PLL nº 151/2022), pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (arts. 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS) e de inconstitucionalidade material por afronta ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da CF/88), bem como por afronta ao art. 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 18 de novembro de 2022.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

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18/11/2022 13:56:26
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