PARECER JURÍDICO |
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"Institui o Estatuto da Criança e do Adolescente com Câncer no Município de Guaíba e dá outras providências" 1. Relatório:O Ver. Dr. João Collares apresentou o Projeto de Lei nº 150/2022 à Câmara Municipal, objetivando instituir o Estatuto da Criança e do Adolescente com Câncer no Município de Guaíba. O projeto foi encaminhado à Procuradoria Jurídica para análise jurídica nos termos do art. 105 do RI. O proponente apresentou substitutivo, encaminhado para admissibilidade. 2. Mérito:Preliminarmente, verifica-se que a norma inscrita no artigo 105 do Regimento Interno outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido – e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias. A doutrina trata do sentido da norma inscrita no art. 105 do RI caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido no Parlamento, por exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposta possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução é feita por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105 do RI). O artigo 18 da CF/88, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política” envolve um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios. A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:
A política pública que se pretende instituir no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local e na competência municipal, visto que o substitutivo ao Projeto de Lei nº 150/2022 busca instituir regras sobre o primeiro atendimento de crianças e adolescentes com suspeita de câncer no estrito âmbito municipal. Além disso, verifica-se que o substitutivo ao Projeto de Lei nº 150/2022 concretiza a chamada competência suplementar complementar prevista no art. 30, II, da CF/88, visto que detalha, no âmbito do Município de Guaíba, a Lei nº 12.732, de 22 de novembro de 2012, que dispõe sobre regras do primeiro atendimento de pacientes com neoplasia maligna, tendo observado as normas gerais instituídas pelo referido diploma nacional. No que concerne ao conteúdo material do substitutivo, não se verificam óbices de natureza jurídica, pois busca concretizar o direito fundamental à saúde (art. 6º da CF/88), cuja disciplina do art. 196 da CF/88 prevê: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” O art. 198 da CF/88, por sua vez, estabelece que os serviços de saúde se desenvolvem por meio de um sistema público organizado e mantido com recursos do Poder Público, nos seguintes termos:
Percebe-se, pois, que o substitutivo ao Projeto de Lei nº 150/2022 está em consonância com o regramento constitucional a respeito do direito à saúde, consagrado no art. 6º como direito fundamental, cuja aplicabilidade é imediata (art. 5º, § 1º, da CF/88). Sobre a aplicabilidade imediata do artigo 6º da CF/88, veja-se:
Cabe, neste momento, enfrentar a questão da iniciativa para a propositura do projeto de lei. Para externar o entendimento deste procurador sobre o tema, foi utilizado, como base, o artigo “Limites da iniciativa parlamentar sobre políticas públicas: uma proposta de releitura do art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal”, de autoria de João Trindade Cavalcante Filho, representando o Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal[1]. O referido trabalho propõe uma visão atual sobre os limites à iniciativa parlamentar previstos na CF especialmente no que concerne à formulação de políticas públicas, com base em algumas decisões proferidas pelo STF em controle de constitucionalidade. A República Federativa do Brasil, tendo adotado o sistema constitucional de tripartição dos Poderes, dividiu as funções de legislar, administrar e julgar aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, todos independentes e harmônicos, na forma do artigo 2º da CF. No campo do Poder Legislativo, duas são, essencialmente, as funções típicas: a legislativa e a fiscalizadora, esta de natureza contábil, financeira, orçamentária e patrimonial sobre os atos do Poder Executivo. As funções executiva e jurisdicional, como a criação de normas de organização interna, provimento de cargos, realização de licitações, julgamento do Presidente da República nos crimes de responsabilidade pelo Senado Federal – no âmbito da União –, são exercidas de forma atípica pelo Poder Legislativo, com fundamento no sistema de freios e contrapesos (“checks and balances”), que equilibra o exercício das tarefas públicas entre os Poderes de Estado. A Constituição Federal de 1988, com base na tripartição dos Poderes, disciplina a iniciativa parlamentar a partir do seu artigo 61, o qual prevê: “A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.” Assim, embora a função legislativa tenha sido entregue ao Poder Legislativo, a Constituição Brasileira conferiu o poder de iniciativa a autoridades do Executivo, do Judiciário, do MP e, inclusive, aos cidadãos diretamente. Por ser uma norma genérica que atribui, indistintamente, o poder de iniciativa para a deflagração do processo legislativo a várias autoridades, a doutrina a nomeia de “iniciativa comum” ou “iniciativa concorrente”, constituindo-se como regra a ser observada em todos os âmbitos da Federação, com base no princípio da simetria. O § 1º do artigo 61, por sua vez, apresenta os casos em que o poder de iniciativa é privativo do Chefe do Executivo, para que se mantenha a harmonia e a independência entre os Poderes. Ou seja, o objetivo real da restrição imposta no § 1º é a segurança do sistema de tripartição dos poderes constitucionais, de modo a que não haja interferências indevidas de um Poder sobre o outro. Dispõe o mencionado artigo 61, § 1º, da CF:
Dessas afirmações é possível extrair o seguinte entendimento: a iniciativa para a deflagração do processo legislativo, em regra, é comum. A iniciativa privativa, por ser uma norma de natureza restritiva, é exceção, sendo “válida, nesse ponto, a lição da hermenêutica clássica, segundo a qual as exceções devem ser interpretadas de forma restritiva.” (CAVALCANTE FILHO, 2013, p. 12). Assim, as hipóteses de iniciativa reservada são apenas e somente aquelas previstas no texto constitucional: arts. 93, caput; 96, I e II; 127, § 2º; 51, IV; 52, XIII; 73, caput c/c 96; 61, § 1º; 165, I a III. Inclusive, o STF já decidiu não ser possível interpretação ampliativa quanto às regras de iniciativa parlamentar:
O rol de iniciativas privativas do Chefe do Executivo, assim, é estrito e não admite interpretação ampliativa; do contrário, ocorreria subversão e/ou perturbação do esquema organizatório funcional da CF, base do princípio da conformidade funcional, que rege a interpretação dos dispositivos constitucionais. Em outros termos, o intérprete não pode chegar a uma conclusão que altere “a repartição de funções constitucionalmente estabelecidas pelo constituinte originário, como é o caso da separação de poderes” (LENZA, 2011, p. 148). O artigo 61, § 1º, da CF não prevê restrição expressa à deflagração de projeto de lei, por parlamentar, estabelecendo políticas públicas. Deve-se, entretanto, verificar quais são os limites, mormente diante das alíneas “b” e “e”, que afetam ao Chefe do Executivo os projetos sobre organização administrativa, criação ou extinção de órgãos públicos. Da análise dos julgados do STF sobre políticas públicas, Cavalcante Filho (2013, p. 15) reconheceu a existência de fases da interpretação judicial sobre esse tema. A primeira, cujo paradigma é a ADI nº 2.417/SP, externa uma interpretação excessivamente ampliativa das restrições do artigo 61, § 1º, ao ponto de ter sido conferida a exclusividade ao Chefe do Executivo para dispor sobre quaisquer matérias pertinentes à Administração Pública. A segunda fase, cujo caso mais representativo é a ADI nº 2.808/RS, em que se analisou a constitucionalidade de lei que instituiu o Polo Estadual de Música Erudita na Região do Vale do Caí, trouxe interpretações menos ampliativas; a lei foi julgada inconstitucional, não por simplesmente dispor sobre matéria de administração pública, mas por ter criado um novo órgão público na estrutura administrativa. A terceira fase de interpretação do artigo 61, § 1º, ainda em implementação, é a menos restritiva, estando em consonância com a CF/88: “não mais se aceita uma interpretação ampliativa das hipóteses de iniciativa privativa; já começa a haver um debate sobre a possibilidade, ou não, de se relativizar a jurisprudência tradicional da Corte acerca do tema; e, principalmente, já se aventa a possibilidade de distinguir entre a criação de um órgão, a fixação de suas atribuições e a criação de política pública dentro das atribuições já fixadas para um órgão já existente.” (CAVALCANTE FILHO, 2013, p. 19). Na ADI nº 3.178/AP, paradigma da fase mais moderna de interpretação do artigo 61, § 1º, o Ministro Carlos Ayres Britto registrou expressamente o seu posicionamento sobre a criação de políticas públicas pelo Legislativo:
O STF, abraçando a fase moderna de interpretação do artigo 61, § 1º, da CF, vem interpretando as restrições à iniciativa parlamentar com menor rigor, permitindo, sob certas balizas, a formulação de políticas públicas pelo Poder Legislativo. Em dois casos emblemáticos, a Corte Suprema defendeu a iniciativa parlamentar para tratar desse tema: 1) AgR no RE 290.549/RJ: lei de iniciativa parlamentar que criou o programa “Rua da Saúde”, a qual foi julgada constitucional, uma vez que “a edição da referida lei, decorrente de iniciativa parlamentar, não representou invasão da esfera da competência privativa do Chefe do Poder Executivo local”, registrando-se, no voto do relator, a seguinte justificativa: “(...) a criação do programa instituído por meio dessa lei apenas tinha por objetivo fomentar a prática de esportes em vias e logradouros públicos, tendo ficado expressamente consignado nesse texto legal que ‘a implantação, coordenação e acompanhamento do programa ficará a cargo do órgão competente do Poder Executivo’, a quem incumbirá, também, aprovar as vias designadas pelos moradores para a execução do programa”; 2) ADI 3.394/AM: lei de iniciativa parlamentar que criou o programa de gratuidade de testes de maternidade e paternidade, a qual foi julgada constitucional por 8 votos a 2, “já que, ao contrário do afirmado pelo requerente, a lei atacada não cria ou estrutura qualquer órgão da Administração Pública local.” Vale lembrar que, na Constituição Federal, a restrição à iniciativa parlamentar prevista no artigo 61, § 1º, II, “e”, se limita aos projetos que criem ou extingam Ministérios ou órgãos da administração pública. Ocorre que a definição de políticas públicas não se confunde com a criação de órgãos públicos. Como bem definiu Cavalcante Filho (2013, p. 22), “a formulação de uma política pública consiste mais em estabelecer uma conexão entre as atribuições de órgãos já existentes, de modo a efetivar um direito social.” Ou seja, a política pública, alicerçada nos direitos fundamentais (de aplicação imediata – artigo 5º, § 1º, CF), não envolve, por si só, a criação de um órgão público; ela se constitui em tarefas a serem implementadas por setores já existentes, sendo possível na medida em que não ocorra a transformação material do órgão, isto é, criação de novas atribuições. A política pública de criação permitida por atividade parlamentar, portanto, é a que estabelece uma conexão entre uma atribuição já existente no órgão público e a efetivação de um direito fundamental, sem criar novas funções ou atribuições. Nesse sentido, a iniciativa do Chefe do Executivo se restringe “à elaboração de normas que remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura da Administração Pública.[2]” Veja-se a esclarecedora lição de Cavalcante Filho (2013, p. 24), que aborda, inclusive, a questão da fixação de prazo para a realização de exame médico:
O substitutivo ao Projeto de Lei nº 150/2022 não objetiva criar novo órgão público ou estabelecer uma nova atribuição; apenas regulamenta e explicita a atividade que já é de incumbência do Poder Público (realização do atendimento médico de pessoas com suspeita ou diagnóstico de câncer no Sistema Único de Saúde). O texto objetiva, especialmente, trazer regras mais detalhadas sobre tal obrigação, inclusive observando a dimensão dos direitos das crianças e adolescentes, cuja responsabilidade por sua realização também incumbe ao Estado. Isto é, a atribuição já existe; só está sendo regulamentada para garantir a sua efetividade no âmbito do Município de Guaíba. Assim, a política criada com o substitutivo ao Projeto de Lei nº 150/2022, além de não estabelecer novas atribuições além das já existentes no Sistema Único de Saúde, visa especialmente a garantir, com efetividade, o direito à vida e à saúde da população infantil, cuja obrigação, imposta ao Poder Público em todas as esferas da Federação, decorre de inúmeros dispositivos constitucionais (artigo 5º, caput e § 1º; artigo 6º; artigos 196 e 198). Ademais, a própria Lei nº 12.732, de 22 de novembro de 2012, que dispõe sobre o primeiro tratamento de paciente com neoplasia maligna comprovada, definindo prazo para o seu início, é de autoria parlamentar. Quem a deflagrou foi o Senador Osmar Dias, por meio do Projeto de Lei do Senado nº 32, de 1997. Segundo Cavalcante Filho (2013, p. 30), “Uma vez mais, tem-se um caso de legislação de iniciativa parlamentar que cria política pública, sem precisar instituir novo órgão: apenas detalhou, especificou e, principalmente, ampliou a efetividade de uma atribuição já prevista em Lei.” Nesse sentido, a fim de contribuir para a argumentação acerca da constitucionalidade do substitutivo ao Projeto de Lei nº 150/2022, veja-se a jurisprudência do TJSP, que bem esclarece a matéria:
[1] Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-122-limites-da-iniciativa-parlamentar-sobre-politicas-publicas-uma-proposta-de-releitura-do-art.-61-ss-1o-ii-e-da-constituicao-federal>. [2] VIEIRA JUNIOR, Ronaldo Jorge Araujo. O Supremo Tribunal Federal e o Controle Jurisdicional da Atuação do Poder Legislativo: visão panorâmica e comentada da jurisprudência constitucional. Brasília: Senado Federal, 2007, p. 260. 3. Conclusão:Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa e não vinculante do parecer jurídico, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria Jurídica opina pela legalidade e regular tramitação do substitutivo ao Projeto de Lei nº 150/2022, por inexistirem vícios materiais ou formais que impeçam a sua deliberação em Plenário. É o parecer, salvo melhor juízo. Guaíba, 17 de novembro de 2022. GUSTAVO DOBLER Procurador OAB/RS nº 110.114B Documento Assinado Digitalmente no padrão ICP-Brasil por:![]() 17/11/2022 20:45:43 |
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Documento publicado digitalmente por GUSTAVO DOBLER em 17/11/2022 ás 20:45:23. Chave MD5 para verificação de integridade desta publicação b205f770a0148d046aaacbd54a528d32.
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