Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 150/2022
PROPONENTE : Ver. Dr. João Collares
     
PARECER : Nº 410/2022
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui o Estatuto da Criança e do Adolescente com Câncer no Município de Guaíba e dá outras providências"

1. Relatório:

O Ver. Dr. João Collares apresentou o Projeto de Lei nº 150/2022 à Câmara Municipal, objetivando instituir o Estatuto da Criança e do Adolescente com Câncer no Município de Guaíba. O projeto foi encaminhado à Procuradoria Jurídica para análise jurídica nos termos do art. 105 do RI. O proponente apresentou substitutivo, encaminhado para admissibilidade.

2. Mérito:

Preliminarmente, verifica-se que a norma inscrita no artigo 105 do Regimento Interno outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido – e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma inscrita no art. 105 do RI caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido no Parlamento, por exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposta possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução é feita por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105 do RI).

O artigo 18 da CF/88, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política” envolve um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A política pública que se pretende instituir no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local e na competência municipal, visto que o substitutivo ao Projeto de Lei nº 150/2022 busca instituir regras sobre o primeiro atendimento de crianças e adolescentes com suspeita de câncer no estrito âmbito municipal.

Além disso, verifica-se que o substitutivo ao Projeto de Lei nº 150/2022 concretiza a chamada competência suplementar complementar prevista no art. 30, II, da CF/88, visto que detalha, no âmbito do Município de Guaíba, a Lei nº 12.732, de 22 de novembro de 2012, que dispõe sobre regras do primeiro atendimento de pacientes com neoplasia maligna, tendo observado as normas gerais instituídas pelo referido diploma nacional.

No que concerne ao conteúdo material do substitutivo, não se verificam óbices de natureza jurídica, pois busca concretizar o direito fundamental à saúde (art. 6º da CF/88), cuja disciplina do art. 196 da CF/88 prevê: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” O art. 198 da CF/88, por sua vez, estabelece que os serviços de saúde se desenvolvem por meio de um sistema público organizado e mantido com recursos do Poder Público, nos seguintes termos:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

Percebe-se, pois, que o substitutivo ao Projeto de Lei nº 150/2022 está em consonância com o regramento constitucional a respeito do direito à saúde, consagrado no art. 6º como direito fundamental, cuja aplicabilidade é imediata (art. 5º, § 1º, da CF/88).

Sobre a aplicabilidade imediata do artigo 6º da CF/88, veja-se:

APELAÇÃO. DIREITO À SAÚDE. AÇÃO PARA APLICAÇÃO DE MEDIDA PROTETIVA. INÉPCIA DA INICIAL. AFASTADA. LEGITIMIDADE PASSIVA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO PODER PÚBLICO. APLICAÇÃO IMEDIATA E INCONDICIONADA DE DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. I - Havendo pedido em harmonia com os requisitos do parágrafo único do art. 286 do CPC, não há falar em inépcia da inicial. II - O acesso às ações e serviços de saúde é universal e igualitário (CF - art. 196), do que deriva a responsabilidade solidária e linear dos entes federativos. A saúde, elevada à condição de direito social fundamental do homem, contido no art. 6º da CF, declarado por seus artigos 196 e seguintes, é de aplicação imediata e incondicionada, nos termos do parágrafo 1º do artigo 5º da C. Federal, que dá ao indivíduo a possibilidade de exigir compulsoriamente as prestações asseguradas. O artigo 196 da Constituição Federal não faz distinção entre os entes federados, de sorte que cada um e todos, indistintamente, são responsáveis pelas ações e serviços de saúde, sendo certo que a descentralização, mera técnica de gestão, não importa compartimentar sua prestação. Preliminar rejeitada. Apelo desprovido. Sentença confirmada em reexame necessário. Unânime. (Apelação Cível Nº 70051387074, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Genaro José Baroni Borges, Julgado em 19/12/2012).

Cabe, neste momento, enfrentar a questão da iniciativa para a propositura do projeto de lei. Para externar o entendimento deste procurador sobre o tema, foi utilizado, como base, o artigo “Limites da iniciativa parlamentar sobre políticas públicas: uma proposta de releitura do art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal”, de autoria de João Trindade Cavalcante Filho, representando o Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal[1]. O referido trabalho propõe uma visão atual sobre os limites à iniciativa parlamentar previstos na CF especialmente no que concerne à formulação de políticas públicas, com base em algumas decisões proferidas pelo STF em controle de constitucionalidade.

A República Federativa do Brasil, tendo adotado o sistema constitucional de tripartição dos Poderes, dividiu as funções de legislar, administrar e julgar aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, todos independentes e harmônicos, na forma do artigo 2º da CF. No campo do Poder Legislativo, duas são, essencialmente, as funções típicas: a legislativa e a fiscalizadora, esta de natureza contábil, financeira, orçamentária e patrimonial sobre os atos do Poder Executivo. As funções executiva e jurisdicional, como a criação de normas de organização interna, provimento de cargos, realização de licitações, julgamento do Presidente da República nos crimes de responsabilidade pelo Senado Federal – no âmbito da União –, são exercidas de forma atípica pelo Poder Legislativo, com fundamento no sistema de freios e contrapesos (“checks and balances”), que equilibra o exercício das tarefas públicas entre os Poderes de Estado.

A Constituição Federal de 1988, com base na tripartição dos Poderes, disciplina a iniciativa parlamentar a partir do seu artigo 61, o qual prevê: “A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.” Assim, embora a função legislativa tenha sido entregue ao Poder Legislativo, a Constituição Brasileira conferiu o poder de iniciativa a autoridades do Executivo, do Judiciário, do MP e, inclusive, aos cidadãos diretamente.

Por ser uma norma genérica que atribui, indistintamente, o poder de iniciativa para a deflagração do processo legislativo a várias autoridades, a doutrina a nomeia de “iniciativa comum” ou “iniciativa concorrente”, constituindo-se como regra a ser observada em todos os âmbitos da Federação, com base no princípio da simetria. O § 1º do artigo 61, por sua vez, apresenta os casos em que o poder de iniciativa é privativo do Chefe do Executivo, para que se mantenha a harmonia e a independência entre os Poderes. Ou seja, o objetivo real da restrição imposta no § 1º é a segurança do sistema de tripartição dos poderes constitucionais, de modo a que não haja interferências indevidas de um Poder sobre o outro.

Dispõe o mencionado artigo 61, § 1º, da CF:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;

e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observadoo disposto no art. 84, VI;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

Dessas afirmações é possível extrair o seguinte entendimento: a iniciativa para a deflagração do processo legislativo, em regra, é comum. A iniciativa privativa, por ser uma norma de natureza restritiva, é exceção, sendo “válida, nesse ponto, a lição da hermenêutica clássica, segundo a qual as exceções devem ser interpretadas de forma restritiva.” (CAVALCANTE FILHO, 2013, p. 12). Assim, as hipóteses de iniciativa reservada são apenas e somente aquelas previstas no texto constitucional: arts. 93, caput; 96, I e II; 127, § 2º; 51, IV; 52, XIII; 73, caput c/c 96; 61, § 1º; 165, I a III. Inclusive, o STF já decidiu não ser possível interpretação ampliativa quanto às regras de iniciativa parlamentar:

DECISÃO RECURSO EXTRAORDINÁRIO – LEI MUNICIPAL – INICIATIVA – SEPARAÇÃO DOS PODERES – PRECEDENTES DO PLENÁRIO – PROVIMENTO. [...] 2. Assiste razão ao recorrente. Os pronunciamentos do Supremo são reiterados no sentido de que a interpretação das regras alusivas à reserva de iniciativa para processo legislativo submetem-se a critérios de direito estrito, sem margem para ampliação das situações constitucionalmente previstas – medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade nº 724/RS, relator o ministro Celso de Mello, acórdão publicado no Diário da Justiça em 27 de abril de 2001, ação direta de inconstitucionalidade nº 2.464/AP, relatora a ministra Ellen Gracie, acórdão publicado no Diário da Justiça em 25 de maio de 2007, e ação direta de inconstitucionalidade nº 3.394/AM, relator o ministro Eros Grau, acórdão publicado no Diário da Justiça em 24 de agosto de 2007. Confiram a ementa do acórdão formalizado pelo Colegiado Maior nesse último processo: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 1º, 2º E 3º DA LEI N. 50, DE 25 DE MAIO DE 2.004, DO ESTADO DO AMAZONAS. TESTE DE MATERNIDADE E PATERNIDADE. REALIZAÇÃO GRATUITA. EFETIVAÇÃO DO DIREITO À ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR QUE CRIA DESPESA PARA O ESTADO-MEMBRO. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL NÃO ACOLHIDA. CONCESSÃO DEFINITIVA DO BENEFÍCIO DA ASSISTÊNCIA JUDICÁRIA GRATUITA. QUESTÃO DE ÍNDOLE PROCESSUAL. INCONSTITUCIONALIDADE DO INCISO I DO ARTIGO 2º. SUCUMBÊNCIA NA AÇÃO INVESTIGATÓRIA. PERDA DO BENEFÍCIO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. INCONSTITUCIONALIDADE DO INCISO III DO ARTIGO 2º. FIXAÇÃO DE PRAZO PARA CUMPRIMENTO DA DECISÃO JUDICIAL QUE DETERMINAR O RESSARCIMENTO DAS DESPESAS REALIZADAS PELO ESTADO-MEMBRO. INCONSTITUCIONALIDADE DO INCISO IV DO ARTIGO 2º. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 61, § 1º, INCISO II, ALÍNEA "E", E NO ARTIGO 5º, INCISO LXXIV, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Ao contrário do afirmado pelo requerente, a lei atacada não cria ou estrutura qualquer órgão da Administração Pública local. Não procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá ser proposto pelo Chefe do Executivo. As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo. Precedentes. […] 7. Ação direta julgada parcialmente procedente para declarar inconstitucionais os incisos I, III e IV, do artigo 2º, bem como a expressão "no prazo de sessenta dias a contar da sua publicação", constante do caput do artigo 3º da Lei n. 50/04 do Estado do Amazonas. A reserva de iniciativa material é exceção e surge apenas quando presente a necessidade de se preservar o ideal de independência entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Incumbe ao município complementar a legislação relativa à proteção do meio ambiente, pelo qual respondem indistintamente as instâncias políticas representativas dos interesses locais. Verificada a ausência de proposição normativa tendente a suprimir ou limitar as atribuições essenciais do Chefe do Executivo no desempenho da função de gestor superior da Administração, descabe cogitar de vício formal de lei resultante de iniciativa parlamentar. [...] (RE 729729, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 13/12/2016, publicado em 01/02/2017).

O rol de iniciativas privativas do Chefe do Executivo, assim, é estrito e não admite interpretação ampliativa; do contrário, ocorreria subversão e/ou perturbação do esquema organizatório funcional da CF, base do princípio da conformidade funcional, que rege a interpretação dos dispositivos constitucionais. Em outros termos, o intérprete não pode chegar a uma conclusão que altere “a repartição de funções constitucionalmente estabelecidas pelo constituinte originário, como é o caso da separação de poderes” (LENZA, 2011, p. 148).

O artigo 61, § 1º, da CF não prevê restrição expressa à deflagração de projeto de lei, por parlamentar, estabelecendo políticas públicas. Deve-se, entretanto, verificar quais são os limites, mormente diante das alíneas “b” e “e”, que afetam ao Chefe do Executivo os projetos sobre organização administrativa, criação ou extinção de órgãos públicos.

Da análise dos julgados do STF sobre políticas públicas, Cavalcante Filho (2013, p. 15) reconheceu a existência de fases da interpretação judicial sobre esse tema. A primeira, cujo paradigma é a ADI nº 2.417/SP, externa uma interpretação excessivamente ampliativa das restrições do artigo 61, § 1º, ao ponto de ter sido conferida a exclusividade ao Chefe do Executivo para dispor sobre quaisquer matérias pertinentes à Administração Pública. A segunda fase, cujo caso mais representativo é a ADI nº 2.808/RS, em que se analisou a constitucionalidade de lei que instituiu o Polo Estadual de Música Erudita na Região do Vale do Caí, trouxe interpretações menos ampliativas; a lei foi julgada inconstitucional, não por simplesmente dispor sobre matéria de administração pública, mas por ter criado um novo órgão público na estrutura administrativa.

A terceira fase de interpretação do artigo 61, § 1º, ainda em implementação, é a menos restritiva, estando em consonância com a CF/88: “não mais se aceita uma interpretação ampliativa das hipóteses de iniciativa privativa; já começa a haver um debate sobre a possibilidade, ou não, de se relativizar a jurisprudência tradicional da Corte acerca do tema; e, principalmente, já se aventa a possibilidade de distinguir entre a criação de um órgão, a fixação de suas atribuições e a criação de política pública dentro das atribuições já fixadas para um órgão já existente.” (CAVALCANTE FILHO, 2013, p. 19).

Na ADI nº 3.178/AP, paradigma da fase mais moderna de interpretação do artigo 61, § 1º, o Ministro Carlos Ayres Britto registrou expressamente o seu posicionamento sobre a criação de políticas públicas pelo Legislativo:

(...) a princípio, não vejo como inconstitucional uma lei, de iniciativa de qualquer parlamentar, que institua política pública no âmbito de órgão estatal ou de entidade preexistente, desde que essa lei não crie fundo, redundantemente, financeiro para o implemento dessa política pública.

O STF, abraçando a fase moderna de interpretação do artigo 61, § 1º, da CF, vem interpretando as restrições à iniciativa parlamentar com menor rigor, permitindo, sob certas balizas, a formulação de políticas públicas pelo Poder Legislativo. Em dois casos emblemáticos, a Corte Suprema defendeu a iniciativa parlamentar para tratar desse tema:

1) AgR no RE 290.549/RJ: lei de iniciativa parlamentar que criou o programa “Rua da Saúde”, a qual foi julgada constitucional, uma vez que “a edição da referida lei, decorrente de iniciativa parlamentar, não representou invasão da esfera da competência privativa do Chefe do Poder Executivo local”, registrando-se, no voto do relator, a seguinte justificativa: “(...) a criação do programa instituído por meio dessa lei apenas tinha por objetivo fomentar a prática de esportes em vias e logradouros públicos, tendo ficado expressamente consignado nesse texto legal que ‘a implantação, coordenação e acompanhamento do programa ficará a cargo do órgão competente do Poder Executivo’, a quem incumbirá, também, aprovar as vias designadas pelos moradores para a execução do programa”;

2) ADI 3.394/AM: lei de iniciativa parlamentar que criou o programa de gratuidade de testes de maternidade e paternidade, a qual foi julgada constitucional por 8 votos a 2, “já que, ao contrário do afirmado pelo requerente, a lei atacada não cria ou estrutura qualquer órgão da Administração Pública local.”

Vale lembrar que, na Constituição Federal, a restrição à iniciativa parlamentar prevista no artigo 61, § 1º, II, “e”, se limita aos projetos que criem ou extingam Ministérios ou órgãos da administração pública. Ocorre que a definição de políticas públicas não se confunde com a criação de órgãos públicos. Como bem definiu Cavalcante Filho (2013, p. 22), “a formulação de uma política pública consiste mais em estabelecer uma conexão entre as atribuições de órgãos já existentes, de modo a efetivar um direito social.” Ou seja, a política pública, alicerçada nos direitos fundamentais (de aplicação imediata – artigo 5º, § 1º, CF), não envolve, por si só, a criação de um órgão público; ela se constitui em tarefas a serem implementadas por setores já existentes, sendo possível na medida em que não ocorra a transformação material do órgão, isto é, criação de novas atribuições.

A política pública de criação permitida por atividade parlamentar, portanto, é a que estabelece uma conexão entre uma atribuição já existente no órgão público e a efetivação de um direito fundamental, sem criar novas funções ou atribuições. Nesse sentido, a iniciativa do Chefe do Executivo se restringe “à elaboração de normas que remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura da Administração Pública.[2]

Veja-se a esclarecedora lição de Cavalcante Filho (2013, p. 24), que aborda, inclusive, a questão da fixação de prazo para a realização de exame médico:

Perceba-se que, ao se adotar essa linha de argumentação, é necessário distinguir a criação de uma nova atribuição (o que é vedado mediante iniciativa parlamentar) da mera explicitação e/ou regulamentação de uma atividade que já cabe ao órgão. Por exemplo: atribuir ao SUS a estipulação de critérios para a avaliação da qualidade dos cursos superiores de Medicina significaria dar uma nova atribuição ao sistema, ao passo que estipular prazos para o primeiro tratamento de pessoas diagnosticadas com neoplasia nada mais é que a explicitação – ou, melhor, a regulamentação (lato sensu) – de uma atividade que já cabe ao Sistema desempenhar.

O substitutivo ao Projeto de Lei nº 150/2022 não objetiva criar novo órgão público ou estabelecer uma nova atribuição; apenas regulamenta e explicita a atividade que já é de incumbência do Poder Público (realização do atendimento médico de pessoas com suspeita ou diagnóstico de câncer no Sistema Único de Saúde). O texto objetiva, especialmente, trazer regras mais detalhadas sobre tal obrigação, inclusive observando a dimensão dos direitos das crianças e adolescentes, cuja responsabilidade por sua realização também incumbe ao Estado. Isto é, a atribuição já existe; só está sendo regulamentada para garantir a sua efetividade no âmbito do Município de Guaíba.

Assim, a política criada com o substitutivo ao Projeto de Lei nº 150/2022, além de não estabelecer novas atribuições além das já existentes no Sistema Único de Saúde, visa especialmente a garantir, com efetividade, o direito à vida e à saúde da população infantil, cuja obrigação, imposta ao Poder Público em todas as esferas da Federação, decorre de inúmeros dispositivos constitucionais (artigo 5º, caput e § 1º; artigo 6º; artigos 196 e 198).

Ademais, a própria Lei nº 12.732, de 22 de novembro de 2012, que dispõe sobre o primeiro tratamento de paciente com neoplasia maligna comprovada, definindo prazo para o seu início, é de autoria parlamentar. Quem a deflagrou foi o Senador Osmar Dias, por meio do Projeto de Lei do Senado nº 32, de 1997. Segundo Cavalcante Filho (2013, p. 30), “Uma vez mais, tem-se um caso de legislação de iniciativa parlamentar que cria política pública, sem precisar instituir novo órgão: apenas detalhou, especificou e, principalmente, ampliou a efetividade de uma atribuição já prevista em Lei.”

Nesse sentido, a fim de contribuir para a argumentação acerca da constitucionalidade do substitutivo ao Projeto de Lei nº 150/2022, veja-se a jurisprudência do TJSP, que bem esclarece a matéria:

1 - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei nº 13.646, de 14 de outubro de 2015, do Município de Ribeirão Preto, que "institui o atendimento prioritário das pessoas diagnosticadas com câncer".

2 - SUPOSTA OFENSA AO PRINCÍPIO DO PACTO FEDERATIVO. Inocorrência.

2.1 - Em relação aos estabelecimentos públicos, a norma impugnada é orientada (apenas) pelo objetivo de suplementar a Lei Federal nº 12.732, de 22 de novembro de 2012, nos termos do art. 30, II, da Constituição da República. Porque simplesmente adota medidas de aprimoramento para assegurar aos cidadãos de Ribeirão Preto, com base naquelas garantias legais (depois do primeiro tratamento) a continuidade do atendimento prioritário no agendamento de consultas ou realização de exames.

2.2. - Já em relação aos estabelecimentos da rede particular, a lei impugnada se enquadra na cláusula geral do interesse local (CF, art. 30, I) porque – existindo agora disciplina dessa questão para os hospitais da rede pública – a inclusão dos estabelecimentos privados (na mesma regra) decorre do legítimo interesse da comunidade local em padronizar a forma de atendimento dentro do município (na medida do possível).

3 - ALEGAÇÃO DE VÍCIO DE INICIATIVA E OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. Rejeição parcial. Norma que possui conteúdo genérico e abstrato; e que - ao menos nessa parte referente à mera instituição de prioridade (art. 1º) - não implica na criação de novas atribuições para o Poder Executivo, senão na simples reafirmação e concretização de garantia já assegurada (em termos gerais) por meio da Lei Federal nº 12.732, de 22 de novembro de 2012, que dispõe sobre o "primeiro tratamento de paciente com neoplasia maligna comprovada" (no Sistema Único de Saúde). Princípio da reserva de administração que, nesse caso, não é diretamente afetado, mesmo porque "o fato de a regra estar dirigida ao Poder Executivo, por si só, não implica que ela deva ser de iniciativa privativa" do Prefeito (ADI 2444/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 06/11/2014).

4 - ALEGAÇÃO DE FALTA DE INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONIVEIS PARA ATENDER OS NOVOS ENCARGOS. Rejeição. Despesas (extraordinárias) que, se existentes, não implicariam em valores (extremos) suficientes para invalidar norma. Interpretação que decorre tanto do princípio da razoabilidade, como também da ponderação contida na regra do art. 16 da Lei Complementar nº 101/2000, que reputa desnecessária a demonstração de adequação orçamentária de despesa considerada irrelevante. Posicionamento que foi prestigiado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 2444/RS (Rel. Min. Dias Toffoli, j. 06/11/2014) e cuja orientação também é adotada no presente caso como razão de decidir. Inconstitucionalidade afastada sob esse aspecto. Não só por esse fundamento, mas também porque a "ausência de dotação orçamentária prévia em legislação específica não autoriza a declaração de inconstitucionalidade da lei, impedindo tão-somente a sua aplicação naquele exercício financeiro" (STF, ADI 3.599/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes).

[...]

(TJ-SP - ADI: 21940910320168260000 SP 2194091-03.2016.8.26.0000, Relator: Ferreira Rodrigues, Data de Julgamento: 05/04/2017, Órgão Especial, Data de Publicação: 18/05/2017)

[1] Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-122-limites-da-iniciativa-parlamentar-sobre-politicas-publicas-uma-proposta-de-releitura-do-art.-61-ss-1o-ii-e-da-constituicao-federal>.

[2] VIEIRA JUNIOR, Ronaldo Jorge Araujo. O Supremo Tribunal Federal e o Controle Jurisdicional da Atuação do Poder Legislativo: visão panorâmica e comentada da jurisprudência constitucional. Brasília: Senado Federal, 2007, p. 260.

3. Conclusão:

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa e não vinculante do parecer jurídico, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria Jurídica opina pela legalidade e regular tramitação do substitutivo ao Projeto de Lei nº 150/2022, por inexistirem vícios materiais ou formais que impeçam a sua deliberação em Plenário.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 17 de novembro de 2022.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

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17/11/2022 17:45:43
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