PARECER JURÍDICO |
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"Dispõe sobre a publicidade dos contratos de locação de imóveis celebrados pela administração pública municipal de Guaíba, e dá outras providências" 1. Relatório:O Vereador Manoel Eletricista apresentou o Projeto de Lei nº 140/2022 à Câmara Municipal, para dispor acerca da publicidade dos contratos de locação de imóveis celebrados pela Administração Pública Municipal de Guaíba. A proposição foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do art. 105 do Regimento Interno. 2. Mérito:O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios. A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:
A medida pretendida por meio do Projeto de Lei do Legislativo (PLL) nº 140/2022 se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque, além de veicular matéria de competência material do Município, não atrelada às competências legislativas privativas da União (artigo 22 da CF/88), a proposta define um novo instrumento de garantia dos direitos à publicidade e à transparência da gestão pública, diretrizes que possuem amparo constitucional nos princípios da administração pública (artigo 37, caput, da CF/88). A proposta é materialmente compatível com a disciplina constitucional dos princípios da administração pública, os quais estão previstos genericamente no artigo 37, caput, da CF/88: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte”. Ou seja, desde a promulgação da CF/88, o princípio da publicidade é aplicado no âmbito da Administração Pública, pautando toda a atividade pública. Na Constituição Estadual Gaúcha, por sua vez, o princípio da publicidade é consagrado no artigo 19, caput, nos seguintes termos: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes do Estado e dos municípios, visando à promoção do bem público e à prestação de serviços à comunidade e aos indivíduos que a compõe, observará os princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade, da legitimidade, da participação, da razoabilidade, da economicidade, da motivação e o seguinte”. Por fim, impossível deixar de recordar o estabelecido no artigo 5º, inciso XXXIII, da CF/88, que prevê o direito fundamental ao acesso à informação: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. Desse modo, não há dúvidas de que todas as ações políticas que, de algum modo, impliquem a obrigação de assegurar publicidade à atividade pública possuem respaldo constitucional. Além disso, a determinação que se pretende instituir também encontra amparo na legislação federal. A Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, regula o direito ao acesso a informações previsto no artigo 5º, inciso XXXIII, da CF/88, disciplinando os procedimentos a serem observados pela União, Estados, DF e Municípios para a garantia dessa prerrogativa pública. Importante, nesse caso, transcrever o artigo 3º, que institui as diretrizes da publicidade das informações de interesse coletivo ou geral:
Assim, sob os aspectos da competência e da conformidade material da proposta com a Constituição Federal de 1988 e com a Constituição Estadual Gaúcha, não se vê a ocorrência de obstáculos à tramitação. Cabe, neste momento, enfrentar a questão da iniciativa para a propositura do projeto de lei. Para externar o entendimento deste procurador sobre a matéria, foi utilizado, como base, o artigo “Limites da iniciativa parlamentar sobre políticas públicas: uma proposta de releitura do art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal”, de autoria de João Trindade Cavalcante Filho, representando o Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal[1]. O referido trabalho propõe uma visão atual sobre os limites à iniciativa parlamentar previstos na CF especialmente no que concerne à formulação de políticas públicas, com base em algumas decisões proferidas pelo STF em controle de constitucionalidade. A República Federativa do Brasil, tendo adotado o sistema constitucional de tripartição dos Poderes, dividiu as funções de legislar, administrar e julgar aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, todos independentes e harmônicos, na forma do artigo 2º da CF. No campo do Poder Legislativo, duas são, essencialmente, as funções típicas: a legislativa e a fiscalizadora, esta de natureza contábil, financeira, orçamentária e patrimonial sobre os atos do Poder Executivo. As funções executiva e jurisdicional, como a criação de normas de organização interna, provimento de cargos, realização de licitações, julgamento do Presidente da República nos crimes de responsabilidade pelo Senado Federal – no âmbito da União –, são exercidas de forma atípica pelo Poder Legislativo, com fundamento no sistema de freios e contrapesos (“checks and balances”), que equilibra o exercício das tarefas públicas entre os Poderes de Estado. A Constituição Federal de 1988, com base na tripartição dos Poderes, disciplina a iniciativa parlamentar a partir do seu artigo 61, o qual prevê: “A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.” Assim, embora a função legislativa tenha sido entregue ao Poder Legislativo, a Constituição Brasileira conferiu o poder de iniciativa a autoridades do Executivo, do Judiciário, do MP e, inclusive, aos cidadãos diretamente. Por tratar-se de norma genérica que atribui, indistintamente, o poder de iniciativa para a deflagração do processo legislativo a várias autoridades, a doutrina a nomeia de “iniciativa comum” ou “iniciativa concorrente”, constituindo-se como a regra a ser observada em todos os âmbitos da Federação, com base no princípio da simetria. O § 1º do artigo 61, por sua vez, apresenta os casos em que o poder de iniciativa é privativo do Chefe do Executivo, para que se mantenha a harmonia e a independência entre os Poderes. Ou seja, o objetivo real da restrição imposta no § 1º é a segurança do sistema de tripartição dos poderes constitucionais, de modo a que não haja interferências indevidas de um Poder sobre o outro. Dispõe o mencionado artigo 61, § 1º, da CF:
Dessas afirmações é possível extrair o seguinte entendimento: a iniciativa para a deflagração do processo legislativo, em regra, é comum. A iniciativa privativa, por ser uma norma de natureza restritiva, é exceção, sendo “válida, nesse ponto, a lição da hermenêutica clássica, segundo a qual as exceções devem ser interpretadas de forma restritiva.” (CAVALCANTE FILHO, 2013, p. 12). Assim, as hipóteses de iniciativa reservada são apenas e tão somente aquelas previstas no texto constitucional: artigos 93, caput; 96, I e II; 127, § 2º; 51, IV; 52, XIII; 73, caput c/c 96; 61, § 1º; 165, I a III. Inclusive, o STF já decidiu não ser possível interpretação ampliativa quanto às regras de iniciativa parlamentar:
O rol de iniciativas privativas do Chefe do Executivo, portanto, é estrito e não admite interpretação ampliativa; do contrário, ocorreria subversão e/ou perturbação do esquema organizatório funcional estabelecido na CF/88, base do princípio da conformidade funcional, que rege a interpretação dos dispositivos constitucionais. Em palavras mais simples, o intérprete da Constituição não pode chegar a uma conclusão que altere “a repartição de funções constitucionalmente estabelecidas pelo constituinte originário, como é o caso da separação de poderes” (LENZA, 2011, p. 148). O artigo 61, § 1º, da CF/88, assim como o artigo 60, II, “d”, da CE/RS não preveem restrição expressa à deflagração de projeto de lei, por parlamentar, que cria a obrigação de o Poder Público dar publicidade a informações de interesse público, a exemplo daquelas referentes aos edifícios locados para a prestação dos serviços públicos. A propósito, matéria correlata já foi levada a julgamento em diversas ações diretas de inconstitucionalidade, cujo questionamento versou sobre a existência de vício formal de origem na instituição da obrigação de dar publicidade às obras em andamento, por meio de placas instaladas nos locais:
Conforme defendeu o Tribunal de Justiça de SP, leis aprovadas nesse sentido não regulam a forma ou o conteúdo da prestação de serviços públicos, nem dispõem sobre as atribuições dos órgãos públicos, apenas garantindo a efetividade do direito fundamental ao acesso à informação e à transparência da atividade administrativa, razão por que inexiste violação às hipóteses de iniciativa reservada previstas constitucionalmente. O mero fato de a norma se destinar ao Poder Executivo não contamina a proposta de vício formal de inconstitucionalidade, uma vez que, como foi observado, as hipóteses de reserva de iniciativa previstas na CF/88 e na CE/RS não admitem interpretação ampliativa, por consistirem em exceções à regra geral da iniciativa concorrente. Caso se admitisse interpretação tão rígida, o Poder Legislativo ficaria, basicamente, de mãos amarradas, impedido de exercer uma de suas funções típicas. Obviamente, não é esse o interesse da Constituição, que apenas limita os casos de iniciativa nas hipóteses em que evidentemente houver usurpação da independência e da harmonia dos demais poderes. Contudo, vale destacar que, em precedentes dos anos de 2012 e 2014, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul declarou a inconstitucionalidade de leis similares:
Além disso, o art. 1º da proposição adentra em matéria de normas gerais de licitações e contratações administrativas, cuja competência legislativa é privativa da União Federal, nos termos do art. 22, XXVII, da CF/88. Em sentido similar, o § 1º do art. 2º adentra em matéria de iniciativa privativa do Chefe do Executivo Municipal (art. 60, II, “d”, da CE/RS), pois define, de forma detalhada, as dimensões das placas a serem instaladas, o que, conforme a jurisprudência, não pode ser estabelecido por parlamentar em projeto de sua iniciativa, mas apenas pelo próprio titular do Poder Executivo, a partir de norma regulamentar. Assim, como condição para a validade jurídica da proposição, devem ser retirados o art. 1º e o § 1º do art. 2º, renumerando-se os demais dispositivos. Por fim, identifica-se que, no Município de Guaíba, já existe a Lei Municipal nº 4.208, de 06 de julho de 2022, que dispõe sobre a afixação de placa informativa nos prédios alugados pela Prefeitura de Guaíba. Portanto, ainda que não exista inconstitucionalidade completa da proposta, o fato de já haver lei municipal praticamente idêntica impõe que se reavalie a necessidade do processo legislativo, pelo que a medida mais prudente e recomendável é a devolução ao autor, para que, eventualmente, apresente substitutivo ou nova proposição alterando disposições da norma já existente com o fim de torná-la mais completa. [1] Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-122-limites-da-iniciativa-parlamentar-sobre-politicas-publicas-uma-proposta-de-releitura-do-art.-61-ss-1o-ii-e-da-constituicao-federal>. 3. Conclusão:Diante do exposto, considerando que já existe a Lei Municipal nº 4.208, de 06 de julho de 2022, dispondo sobre tema idêntico, a Procuradoria Jurídica opina pela devolução da proposta ao autor, com fundamento no art. 105 do Regimento Interno, para que, eventualmente, apresente substitutivo ou nova proposição alterando as disposições da norma já existente com o objetivo de torná-la mais completa. Caso insista na movimentação da proposição tal como ela foi apresentada, deverá o proponente, por meio de substitutivo, retirar o art. 1º e o § 1º do art. 2º, uma vez que formalmente inconstitucionais (art. 22, XXVII, da CF/88 e art. 60, II, “d”, da CE/RS), e renumerar os dispositivos restantes. É o parecer, salvo melhor juízo. Guaíba, 09 de novembro de 2022. GUSTAVO DOBLER Procurador OAB/RS nº 110.114B Documento Assinado Digitalmente no padrão ICP-Brasil por:![]() 09/11/2022 19:03:39 |
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Documento publicado digitalmente por GUSTAVO DOBLER em 09/11/2022 ás 19:03:21. Chave MD5 para verificação de integridade desta publicação da657a6d3f1ee8f7e309b304b58d1dfe.
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