Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 134/2022
PROPONENTE : Ver.ª Carla Vargas
     
PARECER : Nº 371/2022
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a prevenção e conscientização dos riscos e consequências relacionados ao aborto."

1. Relatório:

A Vereadora Carla Vargas apresentou o Projeto de Lei nº 134/2022 à Câmara Municipal, objetivando dispor sobre a prevenção e conscientização dos riscos e consequências relacionados ao aborto. A proposta foi encaminhada a esta Procuradoria Jurídica para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno. A proposição foi devolvida pelo Presidente da Câmara, ante a sua inconstitucionalidade. A proponente apresentou substitutivo, que retornou à Procuradoria para análise.

2. Mérito:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na CF/88 para os Municípios, é tratada no art. 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A política que se pretende instituir no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque a matéria veiculada na proposta é de responsabilidade comum de todos os entes federados, não sendo uma competência privativa da União (artigo 22 da CF/88), além do que as medidas propostas têm repercussão municipal, restringindo-se ao território do Município de Guaíba.

Quanto à matéria de fundo, não há qualquer óbice à proposta. Convém lembrar que a finalidade primordial do Projeto de Lei nº 134/2022 é conscientizar as mulheres acerca dos riscos e consequências do aborto, medida que encontra amparo na legislação, até mesmo porque, para além dos riscos, como regra geral, o aborto é crime no Brasil (arts. 124 a 126 do Código Penal), devendo ser estimulada a informação sobre as suas consequências.

Conforme dispõe o art. 2º da Lei Maria da Penha, “Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.”

No que concerne à iniciativa para o processo legislativo, para os fins do direito municipal, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

À luz da interpretação das normas jurídicas, é clássica a lição de que as exceções devem ser interpretadas restritivamente. Ou seja, quando a norma jurídica excepciona uma regra geral, fixando requisitos que limitam o exercício de uma prerrogativa, não se pode adotar a técnica da interpretação ampliativa para atingir casos não previstos pela norma.

O rol de iniciativas privativas do Chefe do Executivo, portanto, é estrito e não admite interpretação ampliativa; do contrário, ocorreria subversão do esquema organizatório funcional estabelecido na CF, base do princípio da conformidade funcional, que rege a interpretação constitucional. Em palavras simples, o intérprete não pode chegar a uma conclusão que altere “a repartição de funções constitucionalmente estabelecidas pelo constituinte originário, como é o caso da separação de poderes” (LENZA, 2011, p. 148).

Inclusive, o Supremo Tribunal Federal fez história ao julgar o Recurso Extraordinário com Agravo nº 878.911/RJ, reconhecendo repercussão geral no tema nº 917: “Competência para iniciativa de lei municipal que preveja a obrigatoriedade de instalação de câmeras de segurança em escolas públicas municipais e cercanias”. No acórdão, o STF registrou que as hipóteses de restrição previstas no artigo 61, § 1º, da CF – e, portanto, as correspondentes nas Constituições Estaduais – são taxativas, não admitindo interpretação extensiva por consistirem em normas de exceção ao poder de iniciativa:

O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento no sentido de que as hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão taxativamente previstas no art. 61 da Constituição, que trata da reserva de iniciativa de lei do Chefe do Poder Executivo. Não se permite, assim, interpretação ampliativa do citado dispositivo constitucional, para abarcar matérias além daquelas relativas ao funcionamento e estruturação da Administração Pública, mais especificamente, a servidores e órgãos do Poder Executivo. Nesse sentido, cito o julgamento da ADI 2.672, Rel. Min. Ellen Gracie, Redator p/ acórdão Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, DJ 10.11.2006; da ADI 2.072, Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, DJe 2.3.2015; e da ADI 3.394, Rel. Min. Eros Grau, DJe 215.8.2008.

[...]

Assim, somente nas hipóteses previstas no art. 61, § 1º, da Constituição, ou seja, nos projetos de lei cujas matérias sejam de iniciativa reservada ao Poder Executivo, é que o Poder Legislativo não poderá criar despesa. [...] No caso em exame, a lei municipal que prevê a obrigatoriedade de instalação de câmeras de segurança em escolas públicas municipais e cercanias não cria ou altera a estrutura ou a atribuição de órgãos da Administração Pública local nem trata do regime jurídico de servidores públicos, motivo pelo qual não vislumbro nenhum vício de inconstitucionalidade formal na legislação impugnada.

O entendimento recente do Supremo Tribunal Federal, órgão responsável pela guarda da Constituição (artigo 102, caput, CF), sem dúvidas ecoa por todos os tribunais brasileiros, especialmente porque manifestado em julgamento de recurso constitucional extraordinário, com o reconhecimento da repercussão geral (existência de questão relevante do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassa os interesses subjetivos do processo – artigo 1.035, § 1º, NCPC).

Na situação, verifica-se que não há qualquer limitação constitucional à propositura de projeto por Vereador sobre a matéria tratada, uma vez que, com base nos fundamentos expostos, não se constata qualquer hipótese de iniciativa privativa e/ou exclusiva.

Portanto, da análise do substitutivo ao Projeto de Lei nº 134/2022 em cotejo com a justificativa apresentada, considerando a existência de interesse predominantemente local, entende-se inexistir óbice constitucional ou legal para a tramitação da proposta, sobretudo por envolver matéria de iniciativa concorrente, na forma da jurisprudência do STF.

3. Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria opina pela legalidade e pela regular tramitação do substitutivo ao Projeto de Lei do Legislativo nº 134/2022, por inexistirem vícios de natureza material ou formal que impeçam a sua deliberação em Plenário.

Guaíba, 27 de outubro de 2022.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

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27/10/2022 16:55:34
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