Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 020/2022
PROPONENTE : Ver. Manoel Eletricista, Ver. João Caldas, Ver. Airton Elegância, Ver. Alex Medeiros, Ver. Anderson Gawlinski, Ver.ª Carla Vargas, Ver. Cristiano Eleu, Ver. Florindo Motorista, Ver. Graciano, Ver. Dr. João Collares, Ver. Dr. Jorge da Farmácia, Ver. Juliano Ferreira, Ver.ª Leticia Maidana, Ver. Rosalvo Duarte, Ver. Marcos SJ, Ver. Miguel Crizel e Ver. Tiago Green
     
PARECER : Nº 113/2022
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui no Município de Guaíba, o Programa Creche Domiciliar, visando a regulamentação da atividade das mães crecheiras, que prestam cuidados, em seu domicílio, de crianças de 0 (zero) a 05 (cinco) anos de idade, em turno integral ou contraturno"

1. Relatório:

Os Vereadores apresentaram o Projeto de Lei nº 020/2022 à Câmara Municipal, o qual “Institui no Município de Guaíba, o Programa Creche Domiciliar, visando a regulamentação da atividade das mães crecheiras, que prestam cuidados, em seu domicílio, de crianças de 0 (zero) a 05 (cinco) anos de idade, em turno integral ou contraturno”. A proposta foi encaminhada à Procuradoria para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal.

2. MÉRITO:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A auto-organização dos Municípios está disciplinada, originariamente, no artigo 29, caput, da Constituição Federal, que prevê: “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos”.

O autogoverno se expressa na existência de representantes próprios dos Poderes Executivo e Legislativo em âmbito municipal – Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores –, que são eleitos diretamente pelo povo. A autoadministração e a autolegislação contemplam o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal.

A respeito da autoadministração e da autolegislação, transcreve-se o artigo 30 da Constituição Federal, que enumera algumas das competências dos Municípios:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

Ocorre que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul julgou inconstitucional a medida pretendida através da propositura legislativa em apreço, consoante se extrai dos acórdãos a seguir ementados:


Ementa: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO À EDUCAÇÃO. ABSTENÇÃO DE EXERCER ATIVIDADE IRREGULAR VULGARMENTE CONHECIDA COMO ‘MÃE-CRECHEIRA’. DEVER DO MUNICÍPIO DE ASSEGURAR VAGA EM CRECHE OU PRÉ-ESCOLA EM ESTABELECIMENTO PÚBLICO DE ENSINO. CABIMENTO. MULTA. CABIMENTO. 1. Deve ser mantida a determinação da obrigação de não-fazer, consistente de que a ré deve abster-se de receber crianças em sua casa ou noutro local por ela mantido, eis que creche que vinha mantendo, vulgarmente conhecida de ‘mãe crecheira’, além de funcionar de forma irregular, ainda não apresentava condições adequadas de higiene e segurança às crianças 2. Constitui dever do Município assegurar às crianças o acesso à educação, cabendo-lhe garantir vaga na rede pública ou, então, na rede privada, às suas expensas. 3. É adequada a imposição da pena pecuniária contra o ente estatal quando a determinação judicial demanda apenas providências de ordem administrativa, não necessitando destinação de verbas orçamentárias e empenho de valores, a fim de compeli-lo ao cumprimento. Recursos desprovidos. (Apelação Cível, Nº 70071476204, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em: 30-11-2016)

Ementa: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DECISÃO QUE DETERMINA A INTERDIÇÃO DO LOCAL ONDE FUNCIONA DE FORMA IRREGULAR A CRECHE, VULGARMENTE CONHECIDA DE ‘MÃE CRECHEIRA’. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. CABIMENTO. 1. A antecipação de tutela consiste na concessão imediata da tutela reclamada na petição inicial, desde que haja prova inequívoca capaz de convencer da verossimilhança da alegação e, ainda, que haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, o que vem demonstrado nos autos. Inteligência do art. 273 do CPC. 2. É adequada a interdição do local de funcionamento de creche, vulgarmente conhecida de ‘mãe crecheira’, quando esta além de funcionar de forma irregular, ainda não apresenta condições adequadas de higiene e segurança às crianças. Recurso desprovido.(Agravo de Instrumento, Nº 70062707245, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em: 11-02-2015)

Ementa: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DECISÃO QUE DETERMINA QUE O ENTE MUNICIPAL PROVIDENCIE A REMOÇÃO DAS CRIANÇAS QUE SE ENCONTRAM FREQÜENTANDO ESCOLA DE EDUCAÇÃO INFANTIL DE ATIVIDADE IRREGULAR, VULGARMENTE CONHECIDA DE ‘MÃE CRECHEIRA’, NO PRAZO DE 72 HORAS. DIREITO À EDUCAÇÃO. DEVER DO MUNICÍPIO DE ASSEGURAR VAGA EM CRECHE OU PRÉ-ESCOLA EM ESTABELECIMENTO PÚBLICO DE ENSINO. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. CABIMENTO. MULTA. CABIMENTO. 1. A antecipação de tutela consiste na concessão imediata da tutela reclamada na petição inicial, desde que haja prova inequívoca capaz de convencer da verossimilhança da alegação e, ainda, que haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, o que vem demonstrado nos autos. Inteligência do art. 273 do CPC. 2. Constitui dever do Município assegurar às crianças o acesso à educação, cabendo-lhe garantir vaga na rede pública ou, então, na rede privada, às suas expensas. 3. Não se mostra exíguo o prazo de 72 horas para que o ente municipal providencie na remoção das crianças que freqüentam escola de educação infantil de atividade irregular, vulgarmente conhecida como ‘mãe crecheira’, diante do dever do Município de assegurar às crianças o acesso à educação. 4. É adequada a imposição da pena pecuniária contra o ente estatal quando a determinação judicial demanda apenas providências de ordem administrativa, não necessitando destinação de verbas orçamentárias e empenho de valores, a fim de compeli-lo ao cumprimento. 5. Sendo exagerado o valor da multa pecuniária, cabível a redefinição do valor. Recurso provido em parte.(Agravo de Instrumento, Nº 70062105291, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em: 17-12-2014)

Naquelas ocasiões, o TJRS assentou que, aliás, a Lei nº 9.394/96, que é Lei de Diretrizes e Bases da Educação, prevê a responsabilidade do ente público pela oferta de vagas em creche e pré-escola e em escola de ensino fundamental, gratuitamente, por serem etapas imprescindíveis à educação das crianças, sob pena de ser-lhe imputado crime de responsabilidade. E o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 54, atribui ao Estado o dever de assegurar à criança e ao adolescente (...) atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade, bem como ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria. Ou seja, é incontroversa a responsabilidade do Município de disponibilizar vaga em escola infantil às crianças do Município.

No mesmo sentido, cumpre trazer a lume a expressa e específica previsão da Resolução nº 5, de 17/12/2009, CNE/CNB, do Ministério da Educação, cuja norma tem por objetivo estabelecer as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil a serem observadas na organização de propostas pedagógicas na educação infantil, a qual define educação infantil e afasta a possibilidade de seu desenvolvimento em espaços domésticos, nos seguintes termos:

Primeira etapa da educação básica, oferecida em creches e pré-escolas, às quais se caracterizam como espaços institucionais não domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente do sistema de ensino e submetidos a controle social? Com efeito, a modalidade mãe crecheira se reveste de caráter totalmente precário, destituído de amparo pedagógico, em evidente afronta ao direito educacional de primeira infância.

Nesse ponto, convém trazer à baila, ainda, que já houve recente pretensão no Congresso Nacional de legalizar a figura das mães crecheiras, no PL nº 75/2011, de autoria do Deputado Federal Luiz Pitiman. A proposição, apresentada no ano de 2011, era composta de oito artigos e definia, em síntese, a creche domiciliar como aquela que funciona em residência, com atendimento prioritário à mãe trabalhadora, ou seja, nos mesmos contornos das situações enfrentadas na presente lide. Contudo, essa proposição, após passar por alentada análise da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, foi arquivada (tramitação disponível no sítio oficial da Câmara de Deputados), bem enfrentando a presente questão e fulminando a possibilidade de dar status de educação formal às mães crecheiras.

3. Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria opina pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe – PLL nº 020/2022, pela caracterização de inconstitucionalidade material, consoante jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

Guaíba, 31 de março de 2022.

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador-Geral

OAB/RS 107.136

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