Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Executivo n.º 011/2022
PROPONENTE : Executivo Municipal
     
PARECER : Nº 041/2022
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a criação, composição, estruturação, competências e funcionamento do Conselho Municipal dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana do Município de Guaíba, e dá outras providências"

1. Relatório:

O Poder Executivo Municipal apresentou o Projeto de Lei nº 011/2022 à Câmara Municipal, o qual “Dispõe sobre a criação, composição, estruturação, competências e funcionamento do Conselho Municipal dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana do Município de Guaíba, e dá outras providências”. O projeto foi remetido a esta Procuradoria Jurídica pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno, a fim de que seja efetivado o exercício de controle quanto à constitucionalidade, à competência da Câmara e ao caráter pessoal das proposições.

2. MÉRITO:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

No que diz respeito à criação do Conselho Municipal dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, a proposta também atende à competência do Município para legislar sobre os assuntos de interesse local (artigo 30, I, CF), bem como à iniciativa para a instituição, própria do Poder Executivo.

O artigo 80 da Lei Orgânica Municipal refere que “Os Conselhos Municipais são órgãos governamentais que têm por finalidade auxiliar a administração na orientação, planejamento, interpretação e julgamento de matéria de sua competência.”. A Lei Orgânica Municipal possui Capítulo específico dispondo sobre as diretrizes a respeito desses órgãos auxiliares do Poder Executivo no âmbito municipal:

CAPÍTULO VI

DOS CONSELHOS MUNICIPAIS


Art. 80. Os Conselhos Municipais são Órgãos governamentais que por finalidade auxiliar a administração na orientação, planejamento, interpretação e julgamento de matéria de sua competência.


Art. 81. A Lei especificará as atribuições de cada Conselho, sua organização, composição, funcionamento, forma de nomeação de titular e suplente e prazo de duração do mandato.


Art. 82. Os Conselhos Municipais são compostos paritariamente, nos termos da legislação específica, observado, quando for o caso, a representatividade da administração, das entidades públicas, classistas e da sociedade civil organizada. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

b
Art. 83. Os Conselhos Municipais terão poder de decisão no âmbito de suas atribuições, cabendo, todavia, recurso ao Prefeito Municipal no prazo de 30 (trinta) dias contados da decisão.

Assim, por se tratarem de órgãos governamentais, correta a iniciativa do Executivo para a sua criação, tendo em vista a restrição prevista no artigo 61, § 1º, II, “b”, da CF e no artigo 60, II, “d”, da CE:

Art. 61...

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

O artigo 81 da Lei Orgânica Municipal, por sua vez, estabelece que “A Lei que especificará as atribuições de cada Conselho, sua organização, composição, funcionamento, forma de nomeação de titular e suplente e prazo de duração do mandato.” Tais exigências estão suficientemente atendidas nos dispositivos da proposta que objetiva criar o Conselho Municipal dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana.

No caso do Projeto de Lei do Executivo nº 011/2022, o Conselho Municipal dos será composto por 18 (dezoito) membros, divididos entre 09 (nove) membros dos órgãos governamentais e 09 (nove) membros da sociedade civil organizada, com atuação nas diversas áreas. Verifica-se, portanto, estar devidamente preenchida a exigência de paridade na composição do conselho municipal.

Em relação à matéria de fundo, os conselhos municipais possuem fundamento na Constituição Federal de 1988, em razão do reconhecimento da cidadania como fundamento da República Federativa do Brasil e da democracia como forma de aquisição e exercício do poder. Os conselhos de direitos fazem parte, efetivamente, do processo de abertura para a participação cidadã na política.

O Brasil, desde a Constituição Federal de 1988, vem aprimorando e enriquecendo os meios de participação popular no setor público, seja quanto ao acesso aos cargos públicos, seja quanto à contribuição direta do povo nas decisões políticas de Estado. Instrumentos como o concurso público, a iniciativa popular, o referendo, o plebiscito, a ação popular e os conselhos municipais fortificam o regime democrático e conferem maior legitimidade ao setor público, que passa a estar sob constante fiscalização da sociedade.

Mesmo assim, o Brasil ainda não atingiu níveis satisfatórios de aproximação do povo em relação aos seus governantes. A visão popular existente em relação ao setor público, se não for trabalhada no presente momento, com medidas tais como a que se pretende aprovar, perpetuar-se-á indefinidamente, tendo como efeito direto o maior distanciamento entre o povo e o Poder Público. A propósito, no que diz respeito ao distanciamento do povo em relação ao setor público e sobre os efeitos das medidas de participação popular, Benevides (1994) esclarece:

É evidente que, com a evolução do Estado moderno, o exercício do governo inclui tarefas complexas e técnicas, contribuindo para uma relação autoritária entre governantes e governados. Essa relação, é sabido, tem provocado várias conseqüências negativas, desde a indiferença até a franca hostilidade do povo para com os políticos, em geral, e para os governantes, em particular. A institucionalização de práticas de participação popular tem o apreciável mérito de corrigir essa involução do regime democrático, permitindo que o povo passe a se interessar diretamente pelos assuntos que lhe dizem respeito e, sobretudo, que se mantenha informado sobre os acontecimentos de interesse nacional.[1]

Esses órgãos de participação cidadã estão inseridos na política pública de promoção da igualdade racial, instituída nacionalmente pela Lei Federal nº 12.288/2010, o Estatuto da Igualdade Racial,  e que, ao criar o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR), estabeleceu o seguinte, verbis

Art. 47. É instituído o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) como forma de organização e de articulação voltadas à implementação do conjunto de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades étnicas existentes no País, prestados pelo poder público federal.

§ 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão participar do Sinapir mediante adesão.

§ 2º O poder público federal incentivará a sociedade e a iniciativa privada a participar do Sinapir.

CAPÍTULO II

DOS OBJETIVOS

Art. 48. São objetivos do Sinapir:

I - promover a igualdade étnica e o combate às desigualdades sociais resultantes do racismo, inclusive mediante adoção de ações afirmativas;

II - formular políticas destinadas a combater os fatores de marginalização e a promover a integração social da população negra;

III - descentralizar a implementação de ações afirmativas pelos governos estaduais, distrital e municipais;

IV - articular planos, ações e mecanismos voltados à promoção da igualdade étnica;

V - garantir a eficácia dos meios e dos instrumentos criados para a implementação das ações afirmativas e o cumprimento das metas a serem estabelecidas.

CAPÍTULO III

DA ORGANIZAÇÃO E COMPETÊNCIA

Art. 49. O Poder Executivo federal elaborará plano nacional de promoção da igualdade racial contendo as metas, princípios e diretrizes para a implementação da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR).

§ 1º A elaboração, implementação, coordenação, avaliação e acompanhamento da PNPIR, bem como a organização, articulação e coordenação do Sinapir, serão efetivados pelo órgão responsável pela política de promoção da igualdade étnica em âmbito nacional.

§ 2º É o Poder Executivo federal autorizado a instituir fórum intergovernamental de promoção da igualdade étnica, a ser coordenado pelo órgão responsável pelas políticas de promoção da igualdade étnica, com o objetivo de implementar estratégias que visem à incorporação da política nacional de promoção da igualdade étnica nas ações governamentais de Estados e Municípios.

§ 3º As diretrizes das políticas nacional e regional de promoção da igualdade étnica serão elaboradas por órgão colegiado que assegure a participação da sociedade civil.

Art. 50. Os Poderes Executivos estaduais, distrital e municipais, no âmbito das respectivas esferas de competência, poderão instituir conselhos de promoção da igualdade étnica, de caráter permanente e consultivo, compostos por igual número de representantes de órgãos e entidades públicas e de organizações da sociedade civil representativas da população negra.

Parágrafo único. O Poder Executivo priorizará o repasse dos recursos referentes aos programas e atividades previstos nesta Lei aos Estados, Distrito Federal e Municípios que tenham criado conselhos de promoção da igualdade étnica.

Veja-se, portanto, que a proposta apresentada é compatível e, inclusive, é incentivada pela Constituição Federal, pela Constituição Estadual e pelas demais normas de Direito, uma vez que pretende democratizar o processo de criação de políticas públicas na área da promoção da igualdade racial. Inclusive cabe sublinhar que nos termos do Estatuto da Igualdade Racial “O Poder Executivo priorizará o repasse dos recursos referentes aos programas e atividades previstos nesta Lei aos Estados, Distrito Federal e Municípios que tenham criado conselhos de promoção da igualdade étnica”.

Ainda mais relevante é o comando normativo disposto no art. 26, III, da Lei Federal nº 12.288/2010 – Estatuto da Igualdade Racial, o qual insta o poder público, inclusive a administração municipal, a assegurar que na composição de comissões, conselhos, órgãos e outras instâncias de deliberação vinculadas ao poder público haja a participação de representantes das religiões de matrizes africanas:

Art. 26.  O poder público adotará as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores, especialmente com o objetivo de:

...

III - assegurar a participação proporcional de representantes das religiões de matrizes africanas, ao lado da representação das demais religiões, em comissões, conselhos, órgãos e outras instâncias de deliberação vinculadas ao poder público.

No que diz respeito à constitucionalidade da propositura face ao princípio da laicidade do Estado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já enfrentou a matéria, considerando não significar tratamento diferenciado a uma determinada parcela da comunidade do Município. O Desembargador Eduardo Uhlein divergiu do voto do relator e afirmou que a questão não é sobre a legitimidade da instituição do Conselho Municipal e sim sua composição. Destacou que o próprio Estado do RS instituiu o Conselho Estadual do Povo de Terreiro (Decreto nº 51.587/2014[2]), assim como diversos outros municípios.

 

O julgamento da matéria pelo Tribunal Pleno no Processo nº 70076012830 explicitou que ainda que o Estado seja laico, é responsável pela garantia da igualdade de direitos entre todos os cidadãos, o que certamente inclui a garantia da liberdade de expressão e de culto religioso, consoante se extrai do acórdão a seguir ementado.

 

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DO RIO GRANDE. LEI MUNICIPAL Nº 7.954/2015. CONSELHO MUNICIPAL DO POVO DO TERREIRO. COMPOSIÇÃO. 1. A atribuição de 12 vagas (art. 3º, II, b e §§ 3º e 4º da Lei Municipal nº 7.954/2015) para representantes diretos de Ylês ou casas de Matriz Africana, dentre as 16 vagas reservadas a representantes da sociedade civil organizada, não configura qualquer ofensa ao princípio da laicidade do Estado. 2. Em se tratando de Conselho destinado à formulação e proposição de políticas públicas destinadas aos homens e mulheres identificados com as práticas culturais religiosas de matriz africana, afigura-se inteiramente razoável que seus membros sejam majoritariamente representantes das próprias comunidades de terreiro. 3. Embora o Estado seja laico, é responsável pela garantia da igualdade de direitos entre todos os cidadãos, o que certamente inclui a garantia da liberdade de expressão e de culto religioso. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA IMPROCEDENTE, POR MAIORIA.(Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70076012830, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Redator: Eduardo Uhlein, Julgado em: 21-05-2018).

Por fim, apenas a título de contribuição em caso de aprovação da proposta, recomenda-se que quando da elaboração do Regimento Interno do Conselho, que este disponha sobre regra e procedimentos a seguir quando for o caso de empate nas votações devido ao número total par de conselheiros – 18 membros.

[1] BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Cidadania e democracia. Lua Nova, São Paulo, n. 33, p. 5-16, ago. 1994. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451994000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 12 set. 2017.

[2] http://www.al.rs.gov.br/filerepository/repLegis/arquivos/DEC%2051.587.pdf

3. Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria opina pela legalidade e pela regular tramitação do Projeto de Lei do Executivo nº 011/2022, por inexistirem vícios de natureza material ou formal que impeçam a sua deliberação em Plenário, sendo medida que vai ao encontro da Lei Federal nº 12.288/2010 – Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.

É o parecer.

Guaíba, 14 de fevereiro de 2022.

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador Geral

OAB/RS 107.136

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14/02/2022 14:59:50
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