PARECER JURÍDICO |
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"Dispõe sobre a criação, composição, estruturação, competências e funcionamento do Conselho Municipal dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana do Município de Guaíba, e dá outras providências" 1. Relatório:O Poder Executivo Municipal apresentou o Projeto de Lei nº 011/2022 à Câmara Municipal, o qual “Dispõe sobre a criação, composição, estruturação, competências e funcionamento do Conselho Municipal dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana do Município de Guaíba, e dá outras providências”. O projeto foi remetido a esta Procuradoria Jurídica pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno, a fim de que seja efetivado o exercício de controle quanto à constitucionalidade, à competência da Câmara e ao caráter pessoal das proposições. 2. MÉRITO:O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios. A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos: Art. 30. Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local; II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual; V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006) VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população; VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. No que diz respeito à criação do Conselho Municipal dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, a proposta também atende à competência do Município para legislar sobre os assuntos de interesse local (artigo 30, I, CF), bem como à iniciativa para a instituição, própria do Poder Executivo. O artigo 80 da Lei Orgânica Municipal refere que “Os Conselhos Municipais são órgãos governamentais que têm por finalidade auxiliar a administração na orientação, planejamento, interpretação e julgamento de matéria de sua competência.”. A Lei Orgânica Municipal possui Capítulo específico dispondo sobre as diretrizes a respeito desses órgãos auxiliares do Poder Executivo no âmbito municipal: CAPÍTULO VI DOS CONSELHOS MUNICIPAIS
b Assim, por se tratarem de órgãos governamentais, correta a iniciativa do Executivo para a sua criação, tendo em vista a restrição prevista no artigo 61, § 1º, II, “b”, da CF e no artigo 60, II, “d”, da CE: Art. 61... § 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas; II - disponham sobre: a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração; b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios; O artigo 81 da Lei Orgânica Municipal, por sua vez, estabelece que “A Lei que especificará as atribuições de cada Conselho, sua organização, composição, funcionamento, forma de nomeação de titular e suplente e prazo de duração do mandato.” Tais exigências estão suficientemente atendidas nos dispositivos da proposta que objetiva criar o Conselho Municipal dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana. No caso do Projeto de Lei do Executivo nº 011/2022, o Conselho Municipal dos será composto por 18 (dezoito) membros, divididos entre 09 (nove) membros dos órgãos governamentais e 09 (nove) membros da sociedade civil organizada, com atuação nas diversas áreas. Verifica-se, portanto, estar devidamente preenchida a exigência de paridade na composição do conselho municipal. Em relação à matéria de fundo, os conselhos municipais possuem fundamento na Constituição Federal de 1988, em razão do reconhecimento da cidadania como fundamento da República Federativa do Brasil e da democracia como forma de aquisição e exercício do poder. Os conselhos de direitos fazem parte, efetivamente, do processo de abertura para a participação cidadã na política. O Brasil, desde a Constituição Federal de 1988, vem aprimorando e enriquecendo os meios de participação popular no setor público, seja quanto ao acesso aos cargos públicos, seja quanto à contribuição direta do povo nas decisões políticas de Estado. Instrumentos como o concurso público, a iniciativa popular, o referendo, o plebiscito, a ação popular e os conselhos municipais fortificam o regime democrático e conferem maior legitimidade ao setor público, que passa a estar sob constante fiscalização da sociedade. Mesmo assim, o Brasil ainda não atingiu níveis satisfatórios de aproximação do povo em relação aos seus governantes. A visão popular existente em relação ao setor público, se não for trabalhada no presente momento, com medidas tais como a que se pretende aprovar, perpetuar-se-á indefinidamente, tendo como efeito direto o maior distanciamento entre o povo e o Poder Público. A propósito, no que diz respeito ao distanciamento do povo em relação ao setor público e sobre os efeitos das medidas de participação popular, Benevides (1994) esclarece: É evidente que, com a evolução do Estado moderno, o exercício do governo inclui tarefas complexas e técnicas, contribuindo para uma relação autoritária entre governantes e governados. Essa relação, é sabido, tem provocado várias conseqüências negativas, desde a indiferença até a franca hostilidade do povo para com os políticos, em geral, e para os governantes, em particular. A institucionalização de práticas de participação popular tem o apreciável mérito de corrigir essa involução do regime democrático, permitindo que o povo passe a se interessar diretamente pelos assuntos que lhe dizem respeito e, sobretudo, que se mantenha informado sobre os acontecimentos de interesse nacional.[1] Esses órgãos de participação cidadã estão inseridos na política pública de promoção da igualdade racial, instituída nacionalmente pela Lei Federal nº 12.288/2010, o Estatuto da Igualdade Racial, e que, ao criar o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR), estabeleceu o seguinte, verbis Art. 47. É instituído o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) como forma de organização e de articulação voltadas à implementação do conjunto de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades étnicas existentes no País, prestados pelo poder público federal. § 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão participar do Sinapir mediante adesão. § 2º O poder público federal incentivará a sociedade e a iniciativa privada a participar do Sinapir. CAPÍTULO II DOS OBJETIVOS Art. 48. São objetivos do Sinapir: I - promover a igualdade étnica e o combate às desigualdades sociais resultantes do racismo, inclusive mediante adoção de ações afirmativas; II - formular políticas destinadas a combater os fatores de marginalização e a promover a integração social da população negra; III - descentralizar a implementação de ações afirmativas pelos governos estaduais, distrital e municipais; IV - articular planos, ações e mecanismos voltados à promoção da igualdade étnica; V - garantir a eficácia dos meios e dos instrumentos criados para a implementação das ações afirmativas e o cumprimento das metas a serem estabelecidas. CAPÍTULO III DA ORGANIZAÇÃO E COMPETÊNCIA Art. 49. O Poder Executivo federal elaborará plano nacional de promoção da igualdade racial contendo as metas, princípios e diretrizes para a implementação da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR). § 1º A elaboração, implementação, coordenação, avaliação e acompanhamento da PNPIR, bem como a organização, articulação e coordenação do Sinapir, serão efetivados pelo órgão responsável pela política de promoção da igualdade étnica em âmbito nacional. § 2º É o Poder Executivo federal autorizado a instituir fórum intergovernamental de promoção da igualdade étnica, a ser coordenado pelo órgão responsável pelas políticas de promoção da igualdade étnica, com o objetivo de implementar estratégias que visem à incorporação da política nacional de promoção da igualdade étnica nas ações governamentais de Estados e Municípios. § 3º As diretrizes das políticas nacional e regional de promoção da igualdade étnica serão elaboradas por órgão colegiado que assegure a participação da sociedade civil. Art. 50. Os Poderes Executivos estaduais, distrital e municipais, no âmbito das respectivas esferas de competência, poderão instituir conselhos de promoção da igualdade étnica, de caráter permanente e consultivo, compostos por igual número de representantes de órgãos e entidades públicas e de organizações da sociedade civil representativas da população negra. Parágrafo único. O Poder Executivo priorizará o repasse dos recursos referentes aos programas e atividades previstos nesta Lei aos Estados, Distrito Federal e Municípios que tenham criado conselhos de promoção da igualdade étnica. Veja-se, portanto, que a proposta apresentada é compatível e, inclusive, é incentivada pela Constituição Federal, pela Constituição Estadual e pelas demais normas de Direito, uma vez que pretende democratizar o processo de criação de políticas públicas na área da promoção da igualdade racial. Inclusive cabe sublinhar que nos termos do Estatuto da Igualdade Racial “O Poder Executivo priorizará o repasse dos recursos referentes aos programas e atividades previstos nesta Lei aos Estados, Distrito Federal e Municípios que tenham criado conselhos de promoção da igualdade étnica”. Ainda mais relevante é o comando normativo disposto no art. 26, III, da Lei Federal nº 12.288/2010 – Estatuto da Igualdade Racial, o qual insta o poder público, inclusive a administração municipal, a assegurar que na composição de comissões, conselhos, órgãos e outras instâncias de deliberação vinculadas ao poder público haja a participação de representantes das religiões de matrizes africanas: Art. 26. O poder público adotará as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores, especialmente com o objetivo de: ... III - assegurar a participação proporcional de representantes das religiões de matrizes africanas, ao lado da representação das demais religiões, em comissões, conselhos, órgãos e outras instâncias de deliberação vinculadas ao poder público. No que diz respeito à constitucionalidade da propositura face ao princípio da laicidade do Estado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já enfrentou a matéria, considerando não significar tratamento diferenciado a uma determinada parcela da comunidade do Município. O Desembargador Eduardo Uhlein divergiu do voto do relator e afirmou que a questão não é sobre a legitimidade da instituição do Conselho Municipal e sim sua composição. Destacou que o próprio Estado do RS instituiu o Conselho Estadual do Povo de Terreiro (Decreto nº 51.587/2014[2]), assim como diversos outros municípios.
O julgamento da matéria pelo Tribunal Pleno no Processo nº 70076012830 explicitou que ainda que o Estado seja laico, é responsável pela garantia da igualdade de direitos entre todos os cidadãos, o que certamente inclui a garantia da liberdade de expressão e de culto religioso, consoante se extrai do acórdão a seguir ementado.
Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DO RIO GRANDE. LEI MUNICIPAL Nº 7.954/2015. CONSELHO MUNICIPAL DO POVO DO TERREIRO. COMPOSIÇÃO. 1. A atribuição de 12 vagas (art. 3º, II, b e §§ 3º e 4º da Lei Municipal nº 7.954/2015) para representantes diretos de Ylês ou casas de Matriz Africana, dentre as 16 vagas reservadas a representantes da sociedade civil organizada, não configura qualquer ofensa ao princípio da laicidade do Estado. 2. Em se tratando de Conselho destinado à formulação e proposição de políticas públicas destinadas aos homens e mulheres identificados com as práticas culturais religiosas de matriz africana, afigura-se inteiramente razoável que seus membros sejam majoritariamente representantes das próprias comunidades de terreiro. 3. Embora o Estado seja laico, é responsável pela garantia da igualdade de direitos entre todos os cidadãos, o que certamente inclui a garantia da liberdade de expressão e de culto religioso. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA IMPROCEDENTE, POR MAIORIA.(Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70076012830, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Redator: Eduardo Uhlein, Julgado em: 21-05-2018). Por fim, apenas a título de contribuição em caso de aprovação da proposta, recomenda-se que quando da elaboração do Regimento Interno do Conselho, que este disponha sobre regra e procedimentos a seguir quando for o caso de empate nas votações devido ao número total par de conselheiros – 18 membros. [1] BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Cidadania e democracia. Lua Nova, São Paulo, n. 33, p. 5-16, ago. 1994. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451994000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 12 set. 2017. [2] http://www.al.rs.gov.br/filerepository/repLegis/arquivos/DEC%2051.587.pdf 3. Conclusão:Diante do exposto, a Procuradoria opina pela legalidade e pela regular tramitação do Projeto de Lei do Executivo nº 011/2022, por inexistirem vícios de natureza material ou formal que impeçam a sua deliberação em Plenário, sendo medida que vai ao encontro da Lei Federal nº 12.288/2010 – Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. É o parecer. Guaíba, 14 de fevereiro de 2022. FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS Procurador Geral OAB/RS 107.136 Documento Assinado Digitalmente no padrão ICP-Brasil por:![]() 14/02/2022 17:59:50 |
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