Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 009/2022
PROPONENTE : Ver. Ale Alves
     
PARECER : Nº 039/2022
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Fica proibido, no Município de Guaíba, manter animais (cavalos) amarrados com a cabeça para cima, prática usada nas hotelarias de animais"

1. Relatório:

O Vereador Ale Alves (PDT) apresentou o Projeto de Lei nº 009/2022 à Câmara Municipal, o qual “Fica proibido, no Município de Guaíba, manter animais (cavalos) amarrados com a cabeça para cima, prática usada nas hotelarias de animais”. A proposição foi encaminhada à Procuradoria para análise nos termos do art. 105 do Regimento Interno. O proponente apresentou substitutivo, entregue à Procuradoria para análise.

  

2. MÉRITO:

A forma federativa de Estado adotada pelo Brasil na CF/88 implica, entre outras consequências, a distribuição de competências materiais e legislativas a todos os entes que a compõem, de acordo com o critério da predominância do interesse: as matérias de interesse geral devem ser atribuídas à União; as de interesse regional devem ser entregues aos Estados e ao DF; as de interesse local, por fim, aos Municípios.

No que concerne às competências legislativas, a CF/88 as divide em: a) privativa (artigo 22): atende ao interesse nacional, atribuída apenas à União, com possibilidade de outorga aos Estados para legislar sobre pontos específicos, desde que por lei complementar; b) concorrente (artigo 24, caput): atende ao interesse regional, atribuída à União, para legislar sobre normas gerais, e aos Estados e ao DF, para legislar sobre normas específicas; c) exclusiva (artigo 30, I): atende ao interesse local, atribuída aos Municípios; d) suplementar (artigo 24, § 2º, e artigo 30, II): garante aos Estados suplementar a legislação federal, no que couber, bem como aos Municípios fazer o mesmo em relação às leis federais e estaduais; e) remanescente estadual (artigo 25, § 1º): aos Estados são atribuídas as competências que não sejam vedadas pela Constituição; f) remanescente distrital (artigo 32, § 1º): ao DF são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e aos Municípios.

A Constituição Federal, em matéria de proteção do meio ambiente (art. 24, VI), estabelece a competência concorrente para a União legislar sobre normas gerais (art. 24, § 1º) e para os Estados e o Distrito Federal suplementá-las (art. 24, § 2º). Os Municípios, por sua vez, sob a ótica do artigo 24 da CF/88, não estão legitimados a legislar concorrentemente sobre esse tema. Sua competência legislativa está adstrita ao previsto no art. 30 da CF/88, limitando-se, basicamente, aos assuntos de interesse local e à suplementação da legislação federal e estadual, no que couber.

No campo da competência suplementar dos Municípios, estes estão legitimados a complementar as normas editadas com base no artigo 24 da CF/88, desde que respeitados os aspectos gerais do regramento objeto da suplementação. A respeito da competência dos Municípios para legislar sobre a proteção e defesa do meio ambiente, transcreve-se a esclarecedora lição de Paulo de Bessa Antunes, um dos maiores expoentes em Direito Ambiental:

Na forma do artigo 23 da Lei Fundamental, os Municípios têm competência administrativa para defender o meio ambiente e combater a poluição. Contudo, os Municípios não estão arrolados entre as pessoas jurídicas de direito público interno encarregadas de legislar sobre meio ambiente. No entanto, seria incorreto e insensato dizer-se que os Municípios não têm competência legislativa em matéria ambiental. O artigo 30 da Constituição Federal atribui aos Municípios competência para legislar sobre: assuntos de interesse local; suplementar a legislação federal e estadual no que couber, promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. Está claro que o meio ambiente está incluído no conjunto de atribuições legislativas e administrativas municipais e, em realidade, os Municípios formam um elo fundamental na complexa cadeia de proteção ambiental. A importância dos Municípios é evidente por si mesma, pois as populações e as autoridades locais reúnem amplas condições de bem conhecer os problemas e mazelas ambientais de cada localidade, sendo certo que são as primeiras a localizar e identificar o problema. É através dos Municípios que se pode implementar o princípio ecológico de agir localmente, pensar globalmente.” (‘Direito ambiental’. 8ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, pp. 77-8).

O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu, no RE nº 586.224/SP, julgado em 5 de maio de 2015, que “O Município é competente para legislar sobre o meio ambiente, juntamente com a União e o Estado-membro/DF, no limite do seu interesse local e desde que esse regramento seja harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados (art. 24, VI, c/c o art. 30, I e II, da CF/88)”. Assim, ao menos até o momento, o entendimento predominante é pela competência legislativa dos Municípios para disporem sobre matéria ambiental, desde que respeitados os limites do seu interesse local.

 

No que diz respeito à iniciativa para deflagrar o processo legislativo, as hipóteses de iniciativa privativa do Poder Executivo, que poderiam limitar o poder de iniciativa dos vereadores, estão expressamente previstas na Constituição Federal, aplicadas por simetria aos Estados e Municípios. Dispõe o artigo 61, § 1º, da CF/88:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;

e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observadoo disposto no art. 84, VI;  (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

Para os fins do direito municipal, mais relevante ainda é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

No âmbito municipal, o artigo 119 da Lei Orgânica, à semelhança do artigo 60 da Constituição Estadual, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre certas matérias:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Verifica-se, no caso, que não há qualquer limitação constitucional à propositura de projeto por Vereador sobre a matéria tratada, já que, com base nos fundamentos acima expostos, não se constata qualquer hipótese de iniciativa privativa e/ou exclusiva.

Quanto à matéria de fundo, também não há qualquer óbice à proposta. Convém destacar que o objetivo principal do substitutivo ao PLL nº 009/2022 é promover a proteção dos animais, o que vai ao encontro do art. 225 da CF/88, que refere: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” O § 1º, detalhando os meios de garantir a proteção ambiental, obriga o Poder Público a “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” (inciso VII).

Do mesmo modo, o artigo 251, caput, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul prevê: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo, preservá-lo e restaurá-lo para as presentes e futuras gerações, cabendo a todos exigir do Poder Público a adoção de medidas nesse sentido.” Entre as medidas de proteção ao meio ambiente, o § 1º, VII, prevê: “proteger a flora, a fauna e a paisagem natural, especialmente os cursos d’água, vedadas as práticas que coloquem em risco sua função ecológica e paisagística, provoquem extinção de espécie ou submetam os animais a crueldade”.

Ou seja, a rigor, os parágrafos citados dos textos constitucionais tutelam o valor da vida e do bem-estar animal contra atos cruéis que afrontem os seus interesses enquanto seres sencientes, isto é, como indivíduos capazes de sentir impulsos de sentimentos de forma consciente. Nessa linha, a jurisprudência do STF vem avançando cada vez mais no sentido da proteção da vida animal como valor constitucional autônomo, destacando-se, por exemplo, as decisões que interditam manifestações culturais que impliquem crueldade contra animais: RE nº 153.531 e ADIs nº 2.514, 3.776, 1.856 e 4.983.

No caso das vaquejadas (ADI nº 4.983), o Min. Luís Roberto Barroso desenvolveu sólidas considerações quanto à ética animal e ao dever constitucional de proteção dos interesses dos seres sencientes, sendo pertinente a transcrição de alguns trechos:

  1. Embora a norma constitucional presente no art. 225, caput, tenha feição nitidamente antropocêntrica, a Constituição a equilibra com o biocentrismo por meio de seus parágrafos e incisos. É por essa razão que é possível afirmar que o constituinte não endossou um antropocentrismo radical, mas sim optou por uma versão moderada, em sintonia com a intensidade valorativa conferida ao meio ambiente pela maioria das sociedades contemporâneas. Além disso, o fato de a Constituição Federal de 1988 ser a primeira entre as constituições brasileiras a se importar com a proteção da fauna e da flora é bastante representativo dessa opção antropocêntrica moderada feita pelo constituinte.
  2. A Constituição também avançou no campo da ética animal, sendo uma das poucas no mundo a vedar expressamente a crueldade contra eles. Esse inegável avanço na tutela dos animais está previsto no art. 225, § 1º, VII, onde a Constituição assevera que é dever do Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade. Entretanto, a maior parte da doutrina e a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal têm interpretado essa tutela constitucional dos animais contra a crueldade como dependente do direito ao meio ambiente, em razão da sua inserção no art. 225. Penso, no entanto, que essa interpretação não é a melhor pelas razões que se seguem.
  3. Primeiramente, essa cláusula de vedação de práticas que submetam animais a crueldade foi inserida na Constituição brasileira a partir da discussão, ocorrida na assembleia constituinte, sobre práticas cruéis contra animais, especialmente na “farra do boi”, e não como mais uma medida voltada para a garantia de um meio-ambiente ecologicamente equilibrado. Em segundo lugar, caso o propósito do constituinte fosse ecológico, não seria preciso incluir a vedação de práticas de crueldade contra animais na redação do art. 225, § 1º, VII, já que, no mesmo dispositivo, há o dever de “proteger a fauna”. Por fim, também não foi por um propósito preservacionista que o constituinte inseriu tal cláusula, pois também não teria sentido incluí-la já havendo, no mesmo dispositivo, a cláusula que proíbe práticas que “provoquem a extinção das espécies”.
  4. Portanto, a vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício dos animais sencientes. Esse valor moral está na declaração de que o sofrimento animal importa por si só, independentemente do equilibro do meio ambiente, da sua função ecológica ou de sua importância para a preservação de sua espécie.

Nesse sentido, a proposta estabelece obrigação fundada no poder de polícia administrativa para regular a liberdade e a propriedade individual, no caso, das atividades ligadas à tutela dos animais. De acordo com o art. 78, caput, do Código Tributário Nacional,

Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Hely Lopes Meirelles leciona que “o poder de polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado.” (Direito administrativo brasileiro. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 134). Trata-se de prerrogativa própria de Estado que limita ou condiciona o exercício de liberdades individuais visando atender ao interesse público, que pode envolver, por exemplo, o bem-estar dos animais, tal como propõe o Projeto de Lei nº 009/2022.

Ademais, a prática descrita na justificativa e no texto do projeto enquadra-se na descrição da infração administrativa de maus-tratos a animais, conforme redação do inciso XXXV do art. 7º da Lei Municipal nº 1.730, de 2002, que institui o Código Municipal do Meio Ambiente:

Art. 7º Para fins específicos nesta lei define-se por: (…)

XXV - Maus-tratos a animais: toda e qualquer ação de forma direta ou indireta, ainda que por omissão ou negligência, voltada contra animais, capaz de provocar privação de suas necessidades básicas e de sua movimentação, sobrecarga, excesso de fadiga, sofrimento físico ou mental, medo, estresse, angustia, patologia ou morte, bem como os atos elencados pelos incisos do § 1º do artigo 76 desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 3787/2019)

Portanto, recomenda-se que seja apresentado Substitutivo ao Projeto de Lei nº 009/2022 em vez de projeto de lei esparso para criar uma nova infração administrativa de maus-tratos a animais, sendo mais correto que o objeto da propositura legislativa seja alterar a Lei Municipal nº 1.730, de 2002, para o fim de inserir a conduta descrita no projeto de lei como um tipo específico do gênero maus-tratos, como inciso do § 1º do art. 76.

3. Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria opina pela legalidade e pela regular tramitação do Projeto de Lei do Legislativo nº 009/2022, por inexistirem vícios de natureza material ou formal que impeçam a sua deliberação em Plenário.

Por fim, recomenda-se apresentação de Substitutivo para alteração no Código do Meio Ambiente - Lei Municipal nº 1.730, de 2002, que possui natureza jurídica de lei complementar (art. 46, V, da LOM), salientado que deverá ser respeitado o disposto no art. 46, § 1º, da LOM, no sentido de que sejam garantidas a ampla divulgação e a realização de consulta pública para recebimento de sugestões, o que constitui, evidentemente, etapa necessária à validade jurídica do processo legislativo.

É o parecer.

Guaíba, 10 de fevereiro de 2022.

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador-Geral

OAB/RS 107.136

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10/02/2022 15:37:24
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