Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 002/2022
PROPONENTE : Ver. Rosalvo Duarte
     
PARECER : Nº 019/2022
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a criação do "S.O.S Idoso", para denúncias de crimes e maus tratos praticados contra idosos e dá outras providências"

1. Relatório:

O Vereador Rosalvo Duarte (DEM) apresentou o Projeto de Lei do Legislativo nº 002/2022 à Câmara Municipal, o qual “Dispõe sobre a criação do "S.O.S Idoso", para denúncias de crimes e maus tratos praticados contra idosos e dá outras providências”. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO:

De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

[...]

A norma que se pretende editar no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local e na competência municipal, visto que o Projeto de Lei do Legislativo nº 002/2022 objetiva estabelecer canal de recebimento de denúncias de crimes contra pessoas idosas no Município de Guaíba. Tais medidas se inserem na competência municipal e estão alinhadas aos objetivos de proteção das pessoas idosas e dos princípios constitucionais que vinculam a Administração Pública.

Por outro lado, ocorre que o Projeto de Lei nº 002/2022, embora louvável o seu objeto, contém flagrante vício de iniciativa. A proposição esbarra no disposto no art. 61, § 1º, da Constituição Federal, que estabelece a iniciativa privativa para a deflagração do processo legislativo, fixando as disciplinas próprias do Presidente da República, aplicáveis por simetria aos demais entes federados, entre eles o Município de Guaíba:

Art. 61 (...)

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

[...]

O conteúdo normativo do Projeto de Lei do Legislativo nº 002/2022, invade a iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo Municipal, prevista no aludido art. 61, § 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil, ao pretender criar atribuições ao Poder Executivo, instituindo novo serviço público na esfera desse Poder.

A instituição do serviço pretendido, embora de indubitável mérito, não cabe ao Poder Legislativo, mas apenas ao Executivo, enquanto esfera de poder responsável pela contratação dos serviços úteis à comunidade.

O conteúdo do Projeto de Lei do Legislativo nº 002/2022 também vai de encontro ao princípio constitucional da separação dos poderes, disposto no art. 2º da Constituição Federal. A matéria ofende a chamada reserva de administração, insculpida no artigo 61, § 1º, da Constituição Federal e decorrência do conteúdo nuclear do princípio da separação de poderes, ao dispor a respeito da organização de serviços municipais, sobre os quais cabe ao Poder Executivo iniciar o processo legislativo ou implementar diretamente.

Não se pode esquecer, por fim, do previsto no artigo 119 da Lei Orgânica Municipal, que, à semelhança dos citados dispositivos constitucionais, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre determinadas matérias:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Destarte, apesar de ser meritória a propositura legislativa sob o ponto de vista material, a proposta não poderia ter sido apresentada por membro do Legislativo, uma vez que não cabe aos Vereadores a iniciativa para regulamentar a prestação dos serviços contratados pelo Executivo.

A propósito, destaca-se a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

AÇÃO DIRETA DE INCOSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE CANGUÇU. LEI MUNICIPAL 4.073, DE 04 DE JULHO DE 2014. DISPÕE SOBRE A INTERRUPÇÃO NO FORNECIMENTO DE ÁGUA E ENERGIA ELÉTRICA POR EMPRESAS CONCESSIONÁRIAS. LEI DE INICIATIVA DO LEGISLATIVO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DO CONTRATO FIRMADO ENTRE O MUNICÍPIO E AS EMPRESAS CONCESSIONÁRIAS. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL. 1. Existência de vício formal na lei objurgada, de iniciativa do Poder Legislativo, o qual, ao dispor sobre as condições a serem pactuadas pelo Município e pelas empresas concessionárias dos serviços de água e energia elétrica, invadiu matéria de competência reservada ao Chefe do Poder Executivo Municipal, nos termos dos arts. 8º, caput, 60, II, alínea d , e 82, VII, da Constituição Estadual, afrontando, ainda, o princípio da separação dos poderes, previsto no art. 10 da Constituição Estadual. 2. A norma ainda padece de inconstitucionalidade material, pois ensejou a alteração do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos firmados entre o Município e as empresas concessionárias dos serviços de água e energia elétrica, maculando o art. 163, parágrafo 4º, da Constituição Estadual. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70065372211, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Barcelos de Souza Junior, Julgado em 23/11/2015)

Foi também pela reserva de iniciativa, com a consequente inconstitucionalidade da Lei n.º 3.375, de 3 de junho de 2008, que institui o programa “Disque Idoso”, do Município de Amparo/SP, o Parecer do Ministério Público do Estado de São Paulo na Ação Direta de Inconstitucionalidade Processo nº 166.693.0/3, a qual possuía conteúdo normativo muito similar ao Projeto de Lei ora em análise:

Ementa: 1) Lei n.º 3.375, de 3 de junho de 2008, do Município de Amparo, que institui o programa “Disque Idoso”. Projeto de iniciativa parlamentar. Ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito, sob a alegação de ofensa aos artigos 5º., “caput” e 144 da Constituição do Estado. 2) Compete exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo a instituição, ampliação e aperfeiçoamento dos serviços públicos. Não é dada ao Vereador a iniciativa de projeto de lei que cria programa, com ônus para a Administração e aumento de despesa. Iniciativa que se compreende como usurpação de competência e que se opõe ao princípio da separação dos Poderes. 3) Parecer pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade.

Com efeito, a questão objeto da controvérsia já foi decidida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, conforme se observa no precedente abaixo reproduzido:

Ementa: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE GRAVATAÍ. LEI MUNICIPAL Nº 2.963/2010. VÍCIOS FORMAL E MATERIAL. É manifesta a inconstitucionalidade formal da Lei nº 2.963, de 14 de abril de 2010, do Município de Gravataí, que estabelece a possibilidade do agendamento telefônico de consultas a pacientes idosos e pessoas portadoras de deficiências já cadastrados nas unidades de saúde do Município de Gravataí e dá outras providências, ao dispor sobre matéria afeta a iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo relacionada a organização e funcionamento da administração pública, atritando com os artigos 8º, 10, 19, 60, II, d, e 82, III e VII, todos da Constituição Estadual. Como também, padece de inconstitucionalidade material a lei indigitada ao, criando atribuições aos órgãos do Poder Executivo, acarretar aumento de despesas, sem prévia previsão orçamentária. (Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70037579703, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa, Julgado em: 04-10-2010).

3. Conclusão:

Diante dos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, em razão de vício de iniciativa caracterizado com base no artigo 61, § 1º, da CF/88, no artigo 60, II, alínea “d”, da CE/RS e no artigo 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

É o parecer.

Guaíba, 18 de janeiro de 2022.

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador Geral

OAB/RS nº 107.136

Documento Assinado Digitalmente no padrão ICP-Brasil por:
ICP-BrasilFERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS:01902836022
18/01/2022 14:12:44
Documento publicado digitalmente por FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS em 18/01/2022 ás 14:12:13. Chave MD5 para verificação de integridade desta publicação 276aafe544abecf97182388aa3d0a006.
A autenticidade deste poderá ser verificada em https://www.camaraguaiba.rs.gov.br/autenticidade, mediante código 107454.