Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Executivo n.º 063/2021
PROPONENTE : Executivo Municipal
     
PARECER : Nº 381/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Autoriza o Município de Guaíba a receberem doação o imóvel matriculado sob o nº61.664 e dá outras providências"

1. Relatório:

O Poder Executivo Municipal apresentou o Projeto de Lei nº 063/2021 à Câmara Municipal, o qual “Autoriza o Município de Guaíba a receberem doação o imóvel matriculado sob o nº 61.664 e dá outras providências”. A proposição foi encaminhada a esta Procuradoria Jurídica pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO:

Preliminarmente, quanto à competência, não há qualquer óbice à proposta. O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no art. 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A respeito da iniciativa para a deflagração do processo legislativo, uma vez que o projeto de lei apresentado propõe gerar autorização legislativa para o recebimento de bem imóvel em doação, tem-se por adequada a iniciativa do Chefe do Poder Executivo Municipal. Para os fins do direito municipal, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, visto que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Apenas excepcionalmente o parâmetro da constitucionalidade será a Constituição Federal, desde que se trate de normas constitucionais de reprodução obrigatória (STF, RE nº 650.898/RS). Nesse caso, refere o artigo 59 da Constituição Estadual:

Art. 59. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão técnica da Assembléia Legislativa, à Mesa, ao Governador, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça, às Câmaras Municipais e aos cidadãos, nos casos e na forma previstos nesta Constituição.

Parágrafo único. As leis complementares serão aprovadas pela maioria absoluta dos Deputados.

A Lei Orgânica Municipal que cabe ao Chefe do Poder Executivo a gestão dos bens públicos municipais:

Art. 6º Ao Município compete prover a tudo quanto diga respeito ao seu peculiar interesse e ao bem estar de sua população, cabendo-lhe privativamente dentre outras, as seguintes atribuições:

I - legislar sobre assunto de interesse local; [...]

IX - dispor sobre organização, administração, utilização e alienação de bens públicos;

Art. 52 Compete privativamente ao Prefeito: [...]

XXII - administrar os bens e as rendas municipais, promover o lançamento, a fiscalização e a arrecadação de tributos; [...]

XXIV - propor ao Poder Legislativo o arrendamento ou alienação de bens móveis municipais, bem como a aquisição de outros;

Art. 92 Cabe ao Prefeito a administração dos bens municipais, respeitada a competência da Câmara quanto àqueles utilizados em seus serviços.

Art. 97 A aquisição de bens imóveis, por permuta, dependerá de prévia avaliação e autorização legislativa.

A Administração Pública tem plena liberdade contratual para aceitar doações, particularmente as sem encargos (embora seja possível aceitar doações com encargo), tendo em vista sua capacidade de autoadministração ou autonomia administrativa. O Supremo Tribunal Federal (STF) exarou tal entendimento quando decidiu que o estado-membro tinha competência para incorporar imóvel doado por município à universidade estadual, negando que a prefeitura doadora participasse da manutenção da escola criada, uma vez que era garantida ao Estado a autonomia para tanto pela Constituição (Recurso Extraordinário – RE nº 99.063).

Portanto, foram respeitadas a iniciativa e a competência para a propositura do Projeto de Lei do Executivo nº 063/2021, uma vez que apresentado pelo Chefe do Executivo Municipal, enquanto responsável pela administração do patrimônio municipal.

A respeito do teor do Projeto de Lei nº 063/2021, tem-se que o seu objeto é gerar autorização legislativa para o recebimento, pelo Município de Guaíba, de bens imóveis em doação pura por particular (ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO À INFÂNCIA, associação civil, sem fins lucrativos, inscrita no CNPJ 89.838.181/0001-19). Segundo a exposição de motivos da proposição, “Trata-se de importante doação a ser recebida pelo Município que viabilizaria o retorno de funcionamento da Escola Vovó Flor ao seu local original de fundação, com estrutura e espaço ideais para o melhor atendimento da comunidade. Acontece que a escola foi interditada em virtude da constatação de más condições estruturais do local. Desta forma, após as adequações estruturais necessárias, o Município poderá trazer novamente o funcionamento da Escola Municipal de Ensino Infantil Vovó Flor ao seu espaço onde foi originalmente idealizado”.

Da análise do Projeto de Lei do Executivo nº 063/2021, percebe-se que se trata de doação pura, pois o Município de Guaíba receberá a área como simples liberalidade do proprietário, não existindo encargo que onera o ato, visto que prevalece o entendimento doutrinário de que a mera especificação, no ato de doação, da destinação pública específica do bem não pode ser considerada como encargo. Nesses termos, dispõe o art. 536 do Código Civil: “Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”.

No presente caso, o Município de Guaíba, com a aprovação da proposta, estará autorizado a receber em doação os imóveis descritos no projeto, medida que inegavelmente lhe é benéfica, considerando que a existência de especificação de destinação pública específica sobre o ato vai ao encontro das funções constitucionais do Poder Executivo – garantir o direito fundamental à educação, havendo inegável benefício da administração pública com a pretendida doação.

Por tratar-se do recebimento de bens imóveis em doação pura e simples pelo Município de Guaíba, incidem regras diversas das previstas para o caso de doação promovida pelo Poder Público (art. 17 da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos – Lei nº 8.666/1993). Veja-se a lição doutrinária de Marçal Justen Filho, na obra “Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos”, 16. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 62-63:

Observe-se que a Lei 8.666/1993 não se refere nem aos contratos unilaterais em favor da Administração nem aos atos de disposição praticados por particulares em favor dela. Trata-se de figuras regidas pelo direito privado, na maior parte dos casos. Esse é o caso, por exemplo, de doação de uma biblioteca realizada por um particular em favor do Estado. Sempre que a contratação retratar efetiva liberalidade em favor do Estado, não se cogitará de licitação. A doação de bens em favor da Administração Pública não comporta licitação prévia, tal como se infere da sistemática jurídica adotada pelo nosso ordenamento.

A exigência de prévia licitação relaciona -se preponderantemente com os contratos bilaterais de que participa a Administração Pública. Quando a Administração participa de contrato bilateral, isso significa que a avença produzirá para ela também deveres e não apenas direitos. A Administração será constrangida a realizar uma certa prestação, a qual corresponderá ao dever de a outra parte promover a sua própria prestação. Essa conceituação se apresenta absolutamente procedente nos chamados contratos comutativos ou sinalagmáticos, que se constituem na grande maioria dos contratos bilaterais firmados pela Administração Pública. Na hipótese, a causa da prestação de uma das partes é a obtenção da prestação que incumbe à outra. Nos contratos bilaterais, a regra é a execução contratual produzir modalidade de troca no patrimônio de cada parte. Ao executar a prestação que lhe cabia, o sujeito reduz seu patrimônio o qual é reintegrado através do recebimento da prestação executada pela outra parte.

Diversa é a situação quando o contrato se traduz no dever de um particular realizar um benefício em favor da Administração. Em primeiro lugar, não se cogita da "racionalidade" na gestão dos recursos públicos. Não está em jogo o princípio da economicidade. A Administração estará auferindo benefícios, exclusivamente. Não haverá aquele fenômeno de "troca”. O patrimônio público estará sendo ampliado, eis que não incumbirá à Administração promover qualquer espécie de contraprestação pelo benefício recebido. Todo contrato unilateral favorável à Administração retrata uma contratação vantajosa. É que a Administração recebe vantagens, em virtude de contratos com essa natureza.

Além disso, o mesmo doutrinador (2014, p. 63) classifica o recebimento de bens em doação do caso em análise pela Administração Pública como uma hipótese de inexigibilidade de licitação, por inexistir condições de competição e não haver dever da administração pública em realizar nenhum benefício ao particular:

Quando alguém pretende doar algo em favor da Administração não existe, em princípio, possibilidade de competição. Como o doador é titular do poder de determinar as condições da doação, não haverá possibilidade de seleção de uma única proposta como a mais vantajosa. A doação em favor do Estado configura, em última análise, hipótese de inexigibilidade de licitação. Não há viabilidade de estabelecer parâmetros objetivos de competição. Cada particular, dispondo-se a doar bens, determina a extensão e as condições do contrato. Ademais, nem há contrapartida por parte da Administração que pudesse ser eleita como critério para identificar a maior vantagem. Tem de reconhecer-se, portanto, ser pressuposto da licitação a existência de uma prestação a ser realizada pela Administração em favor de particulares. A razão de ser da licitação não consiste, pura e simplesmente, em a Administração participar de um contrato. O que exige a licitação é o contrato importar o dever de a Administração realizar uma prestação em benefício de particular. Nessa hipótese é que terá cabimento procedimento seletivo, destinado a identificar a melhor proposta, com observância do princípio da isonomia.

A doutrina defende a desnecessidade de autorização legislativa específica para que a Administração Pública possa receber bens em doação sem encargos, considerando que a obrigatoriedade prevista no art. 17 da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 8.666/1993) incide para os atos de disposição praticados pela Administração Pública, em prejuízo do patrimônio público:

Para o recebimento de bens em doação, móveis ou imóveis, não é necessária prévia autorização legislativa. Exceção deve ser feita quando a doação é feita com alguma obrigação remanescente, seja financeira ou não, ou, então, haja previsão de autorização na lei orgânica do município. É necessária ampla análise quanto à doação e o seu interesse público, de forma motivada (FLORES, 2007).

Na Lei Orgânica Municipal, não há dispositivo obrigando a aprovação de projeto de lei para o recebimento de bens públicos em doação. O mais próximo que existe é a regra do art. 97, que prevê: “A aquisição de bens imóveis, por permuta, dependerá de prévia avaliação e autorização legislativa.” Veja-se que o caso aqui analisado não se refere à permuta, e sim à doação (contrato unilateral e gratuito), não se aplicando, portanto, a referida regra.

Para André Ramos Tavares, a simples “especificação, no ato de doação, da destinação (pública) específica do bem não pode ser considerada como encargo, porque, como já acentuado anteriormente, constitui ela própria dever à qual, pelas regras constitucionais, já se encontra vinculada a Administração Pública.”[1]

Também para Eduardo Fortunato Bim “Não se pode considerar como encargo a destinação específica do bem, como didaticamente preceitua a Constituição do Estado de São Paulo (art. 19, IV[2]), mas desde que essa destinação não tenha a intensidade suficiente para caracterizar um encargo ao gestor”.[3]

Em consulta respondida, em 2009, o TCU aquiesceu com a doação de obra pública pelo particular, ao poder público, desde que ela não gerasse encargos à União, com o Acórdão a seguir ementado:

ACÓRDÃO 1317/2009 ATA 24/2009 - PLENÁRIO - 17/06/2009 Relator: MARCOS VINICIOS VILAÇA Sumário: CONSULTA. POSSIBILIDADE DE O OPERADOR PORTUÁRIO, ARRENDATÁRIO, REALIZAR DOAÇÃOAO PODER PÚBLICO, SOB FORMA DE OBRAS DE ADEQUAÇÃO DA INFRAESTRUTURA DE PORTOS. RESPOSTA. ARQUIVAMENTO.

O próprio Tribunal de Contas da União admitiu a doação à Administração Pública no Acórdão nº 32/1995-P e em recente Acórdão da 2ª Câmara do Tribunal de Contas da União nº 7916/2018 entendeu que o art. 17, § 4º da Lei nº 8.666/1993 aplica-se tão somente na “situação em que a Administração figura como doadora”.

A validade de a Administração Pública poder ser donatária tão pacífica que, na esfera federal, o Decreto nº 3.125/99 delega ao Ministro de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) aceitar ou recusar doação, com encargo, de bens imóveis à União (art. 1º, II), competência essa que foi subdelegada ao Secretário do Patrimônio da União (Portaria nº MPOG 30/00, art. 1º, IV).

O contrato de doação que possui a Administração Pública como parte donatária rege-se preponderantemente pelas regras de Direito Privado, com algumas poucas e inevitáveis derrogações de Direito Público, especialmente para a exteriorização da vontade estatal de aceitar o bem – Direito Privado Administrativo.

Cabe alertar para que mesmo no caso de doação sem encargo financeiro, deve a Administração Pública proceder ao levantamento de eventuais passivos a ele relacionados, para que a aquisição do bem não venha a acarretar danos futuros ao patrimônio público. Ademais, em se tratando da hipótese de negócio jurídico, como a doação, essa se perfectibiliza com a transferência da propriedade imobiliária, antecedida da efetiva escritura pública e posterior averbação em matrícula, nos termos do art. 60, caput, da Lei nº 8.666/93 e do art. 541 c/c 108 do Código Civil.

Neste caso, o Município de Guaíba não está dispondo dos bens; pelo contrário, com a aprovação da proposta, receberá em doação o referido imóvel, medida que lhe é favorável, por ampliar o conjunto de bens que compõem o seu patrimônio e a fim de propiciar o direito fundamental à educação aos administrados - contribuindo para a consecução da finalidade constitucional do Município, havendo pertinência temática entre o objeto da doação e a atuação e finalidades do ente.

[1] TAVARES, André Ramos. O regime jurídico do contrato de doação perante a Administração donatária. In: MARINELA, Fernanda; BOLZAN, Fabrício (Orgs.). Leituras complementares de Direito Administrativo: licitações e contratos. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 74.

[2] Art. 19, IV - autorização para a alienação de bens imóveis do Estado ou a cessão de direitos reais a eles relativos, bem como o recebimento, pelo Estado, de doações com encargo, não se considerando como tal a simples destinação específica do bem;

[3] A&C – R. de Dir. Adm. Const. | Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 51-69, abr./jun. 2018. DOI: 10.21056/aec.v18i72.868

3. Conclusão:

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das Comissões Permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela constitucionalidade e pela legalidade do Projeto de Lei do Executivo nº 063/2021, por inexistirem vícios formais ou materiais que impeçam a sua deliberação em Plenário.

É o parecer.

Guaíba, 13 de dezembro de 2021.

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador-Geral

OAB/RS nº 107.136

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13/12/2021 16:28:11
Documento publicado digitalmente por FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS em 13/12/2021 ás 16:27:58. Chave MD5 para verificação de integridade desta publicação bfef0458739fedd35b340d1c76b65bf2.
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