Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 188/2021
PROPONENTE : Ver. Marcos SJ
     
PARECER : Nº 366/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a obrigatoriedade das empresas que exploram o transporte coletivo urbano de passageiros indicarem em locais visíveis no interior de seus ônibus o ano de sua fabricação."

1. Relatório

O Vereador Marcos SJ apresentou o Projeto de Lei nº 188/2021 à Câmara Municipal, objetivando dispor sobre a obrigatoriedade das empresas que exploram o transporte coletivo urbano de passageiros indicarem, em locais visíveis no interior de seus ônibus, o ano de sua fabricação. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO

De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

[...]

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

A norma que se pretende editar no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local e na competência municipal, visto que o Projeto de Lei nº 188/2021 objetiva definir a obrigação de que as empresas que operem o transporte coletivo municipal indiquem, em locais visíveis de seus veículos, o ano de sua fabricação. Tal medida, como referido, se insere na competência legislativa municipal.

Ocorre que o Projeto de Lei nº 188/2021, embora louvável no seu objeto, contém vício de iniciativa. A proposição esbarra no disposto no art. 61, § 1º, da Constituição Federal, que estabelece a iniciativa privativa para a deflagração do processo legislativo, fixando as disciplinas próprias do Presidente da República, aplicáveis por simetria aos demais entes federados, entre eles o Município de Guaíba:

Art. 61 (...)

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

O conteúdo normativo do Projeto de Lei nº 188/2021, do Poder Legislativo, invade a iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo Municipal, prevista no aludido art. 61, § 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil, ao regulamentar serviço público que é de responsabilidade e atribuição do Executivo. O serviço público de transporte coletivo conta necessariamente com certa regulamentação para sua execução e eficiência, podendo ser realizado diretamente ou mediante delegação a terceiros, neste caso precedida da indispensável licitação. No caso do Município de Guaíba, o serviço é delegado a empresas selecionadas por procedimento licitatório, perfazendo-se a relação por contrato administrativo, com cláusulas fixas sobre a forma de prestação do serviço, que até podem ser alteradas unilateralmente, mas apenas por iniciativa do próprio contratante (Poder Executivo).

Diante disso, a alteração das regras contratuais sobre a prestação do serviço não cabe ao Poder Legislativo, mas apenas ao Executivo, enquanto esfera de poder responsável pelo transporte público coletivo municipal. Lembre-se, também, que a medida é uma daquelas que tem aptidão para interferir no contrato administrativo, já que a inscrição de informações ostensivas sobre o ano de fabricação de todos os veículos pode acarretar alteração do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, a impactar nas condições tarifárias do serviço, o que deve estar sob a gestão e responsabilidade do ente federado contratante, ou seja, há reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo nesses casos.

Não se pode esquecer, ainda, do previsto no artigo 119 da Lei Orgânica Municipal, que, à semelhança dos citados dispositivos constitucionais, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre determinadas matérias:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Veja-se, nesse sentido, a jurisprudência pacífica do TJRS:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. LEIS MUNICIPAIS DE ORIGEM LEGISLATIVA. REGRAMENTO DO TRANSPORTE COLETIVO. IMPOSIÇÃO DE ATRIBUIÇÕES, E, POIS, DESPESAS AO PODER EXECUTIVO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. ARTIGOS 10, 60, II, d, e 82, II e VII, TODOS DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. Dispondo as Leis Municipais n.ºs 8.291, 8.294, 8.296, datadas de 09 de fevereiro de 2010, e 8.306, de 18 de fevereiro de 2010, Município de Lajeado, quanto a transporte coletivo, regrando, pois, serviço público, a par de, tanto a primeira delas, como as duas últimas, imporem expressas atribuições ao Executivo, implicam invasão da área de competência legislativa privativa deste último, ao feitio dos artigos 60, II, d, e 82, II e VII, CE/89, além de agressão ao princípio da separação dos poderes, naquelas em que prevista atuação do Executivo, em como posto no artigo 10, CE/89. (Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70039405279, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa, Julgado em: 14-03-2011).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 4.988/2020 DE VIAMÃO. INICIATIVA PARLAMENTAR. TRANSPORTE PÚBLICO. EXIGÊNCIA DE INFORMAÇÕES NOS PONTOS DE ÔNIBUS ACERCA DOS HORÁRIOS. PREVISÃO DE QUE AS DESPESAS CORRAM POR CONTA DAS EMPRESAS CONCESSIONÁRIAS. INVASÃO DE COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. ARTS. 60, INCISO II, ‘D’, 82, INCISOS III E VII, E 163, § 4º, DO CPC. A iniciativa parlamentar de norma que estabelece o dever de instalação de painéis que informem o horário de saída do Veículo Coletivo de Passageiros nos pontos de ônibus fere a competência privativa do Chefe do Poder Executivo Municipal acerca da organização administrativa, na forma dos arts. 60, inciso II, ‘d’, e 82, incisos III e VII, da Constituição Estadual. Previsão de que os custos devem ser suportados pelas empresas concessionárias que configura indevida interferência legislativa nos contratos firmados pelo poder público, além de gerar desequilíbrio econômico-financeiro. Precedentes desta Corte. DECLARADA A INCONSTITUCIONALIDADE. (Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70084829480, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcelo Bandeira Pereira, Julgado em: 16-04-2021)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE CACHOEIRINHA. LEI Nº 4.544/2019 DE INICIATIVA DO PODER LEGISLATIVO LOCAL. DISPOSIÇÃO SOBRE SERVIÇO PÚBLICO CONCEDIDO DE TRANSPORTE PÚBLICO. IMPOSIÇÃO DE PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÕES AOS PASSAGEIROS POR MEIO ELETRÔNICO DIGITAL, INTERNET E APLICATIVO DE APARELHOS SMARTPHONE. HORÁRIO E LOCALIZAÇÃO DOS COLETIVOS. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. INGERÊNCIA SOBRE GESTÃO DE CONTRATOS DE CONCESSÕES DE SERVIÇOS PÚBLICOS. É inconstitucional a Lei Municipal de iniciativa do Poder Legislativo que regula matéria relativa a serviço público concedido de transporte coletivo, interfere nas concessões em curso, criando obrigação à concessionária com risco ao equilíbrio econômico-financeiro, ofendendo, assim, ao disposto nos artigos 8º, caput, 10, 82, incisos II, III e VII, e 163, § 4º, da Constituição Estadual. Vício de origem ou de iniciativa que acarreta, também, violação ao princípio constitucional da Separação dos Poderes. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. (Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70083189977, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tasso Caubi Soares Delabary, Julgado em: 03-08-2020)

Assim, considerando ser exclusiva do Poder Executivo a iniciativa do processo legislativo para definir a forma de prestação do serviço de transporte coletivo, o Projeto de Lei nº 188/2021 sofre de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa, sendo juridicamente inviável. Sugere-se a remessa de indicação ao Executivo, nos termos regimentais, para a alteração da Lei Municipal nº 2.931/12, de modo a estabelecer no regramento a obrigação disposta no Projeto de Lei nº 188/2021, diante do seu inquestionável mérito.

3. Conclusão

Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente devolver ao autor a proposta em epígrafe, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, da CF/88; arts. 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS), bem como por violação ao art. 119, II, da Lei Orgânica.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 1º de dezembro de 2021.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

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01/12/2021 10:44:12
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