Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 189/2021
PROPONENTE : Ver.ª Carla Vargas
     
PARECER : Nº 361/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Cria o Programa Desembarque Seguro no Município de Guaíba e dá outras providências"

1. Relatório

A Vereadora Carla Vargas apresentou o Projeto de Lei nº 189/21 à Câmara Municipal, objetivando criar o Programa Desembarque Seguro no Município de Guaíba. A proposta foi encaminhada à Procuradoria Jurídica pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO

De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

[...]

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

A norma que se pretende editar no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local e na competência municipal, visto que o Projeto de Lei nº 189/21 objetiva estabelecer o direito de mulheres, idosos e pessoas com deficiência requererem o desembarque em lugar onde seja permitido o estacionamento, no trajeto da respectiva linha, mas que não esteja situado em ponto de parada regulamentado. Tal medida se insere na competência municipal e está alinhada aos objetivos de proteção previstos na Constituição Estadual Gaúcha.

Quanto à matéria de fundo, também não há óbices. Isso porque o direito positivo determina a obrigação do Estado, em sentido amplo, de oferecer condições de segurança, conforto e bem-estar às mulheres, aos idosos e às pessoas com deficiência, sendo esse o objetivo principal da norma que se pretende instituir. Nesse sentido, refere o art. 23, inciso II, da CF/88: “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

O Decreto nº 6.949, de 25/8/2009, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo – norma que, aliás, possui o status de emenda constitucional –, prevê, no artigo 4º, 1, que “Os Estados Partes se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência”, comprometendo-se a: “a) Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção”.

A mesma convenção internacional, que integra o texto constitucional por ter sido aprovada na forma do art. 5º, § 3º, da CF/88, define pessoas com deficiência como “aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.” (artigo 1º).

Da mesma forma, no âmbito infraconstitucional, a Lei nº 13.146/2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, estabelece, no artigo 2º: “Considera-se pessoa com deficiência aquele que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” Prevê, ainda, o art. 8º do Estatuto, a respeito do direito à acessibilidade:

Art. 8º É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.

Em relação aos idosos, o art. 230 da CF/88 dispõe: “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.”

No mesmo sentido, o art. 261, IV, da CE/RS define que “Compete ao Estado estabelecer programas de assistência aos idosos portadores ou não de deficiência, com objetivo de proporcionar-lhes segurança econômica, defesa da dignidade e bem-estar, prevenção de doenças, integração e participação ativa na comunidade.”

Ainda, têm-se as previsões constantes no Estatuto do Idoso, que bem definem os direitos e os mecanismos de proteção jurídica dos idosos, com destaque, a propósito, para os arts. 2º e 3º, com a seguinte redação:

Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.

Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

Por fim, quanto às mulheres, refere o art. 2º da Lei Maria da Penha:

Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Importante revelar, ainda, o disposto no artigo 3º da Lei Federal nº 11.340/06, que dispõe, em linhas gerais, sobre os direitos garantidos às mulheres, cujo § 2º atribui também à sociedade o dever de colaboração para a efetivação desses direitos, a partir da criação das condições necessárias para tanto:

Art. 3º Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

[...]

§ 2º Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput.

Quanto à iniciativa, há alguns precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e um precedente do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceram a constitucionalidade de leis municipais com o mesmo propósito. Leiam-se alguns fundamentos da decisão do STF (RE nº 573.040/SP):

O Tribunal de origem assentou não serem inconstitucionais as Leis nºs 2.520/89 e 4.199/05, do Município de Mogi Guaçu, sob o fundamento de que ao referido município seria possível editar legislação sobre esse tema, sendo certo ainda, que eventual diploma nesse sentido editado poderia decorrer de iniciativa parlamentar.

Com efeito, tal entendimento está em sintonia com a jurisprudência desta Corte no sentido de que os municípios podem legislar sobre assuntos de interesse local, destacando-se que o transporte coletivo de passageiros no âmbito de seus respectivos territórios inegavelmente se insere dentro dessa qualificação.

Nesse sentido, citem-se os seguintes trechos de precedentes do Plenário desta Suprema Corte, assim dispondo:

‘(...) 1. A Constituição do Brasil estabelece, no que tange à repartição de competência entre os entes federados, que os assuntos de interesse local competem aos Municípios. Competência residual dos Estados-membros --- matérias que não lhes foram vedadas pela Constituição, nem estiverem contidas entre as competências da União ou dos Municípios. 2. A competência para organizar serviços públicos de interesse local é municipal, entre os quais o de transporte coletivo [artigo 30, inciso V, da CB/88] (...)’ (ADI nº 845/AP, Relator o Ministro Eros Grau, DJe de 7/3/08).

‘(...) A Carta de 1988 estabelece as esferas de competência dos entes federados para a definição das linhas de transporte coletivo de passageiros, cabendo aos Estados as intermunicipais e aos Municípios as intramunicipais, nada impedindo, obviamente, que o serviço de transporte intermunicipal se exerça no território municipal, utilizando-se, mesmo, de logradouros que também servem de itinerário para o transporte local (...)’ (RE nº 107.337-EDv/RJ, Relator para o acórdão o Ministro Ilmar Galvão, DJ de 8/6/01).

E tampouco há que se falar em vício de iniciativa quanto à origem dessas leis, pois nenhuma delas interfere na administração pública municipal, pois se limitam, respectivamente, a disciplinar a concessão de identificação aos portadores de gratuidade legal para uso de meio de transporte público e a permitir que coletivos parem em locais diversos dos demarcados, para desembarque de passageiros portadores de deficiência.

Ora, tais diplomas legais em nada interferem com a administração pública, concernente ao transporte coletivo de passageiros, no âmbito do município de Mogi Guaçu, pois não impõem obrigações ao Chefe do Poder Executivo Municipal sobre o tema, tampouco disciplinam, de forma diversa à anteriormente existente, a forma de prestação desse serviço público, naquela cidade.

Tampouco se pode afirmar que essas leis representam alguma ameaça ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato celebrado com as concessionárias do serviço público em tela, pois, conforme bem destacado pelo acórdão atacado, a Lei local nº 2.590/89 encontrava-se em vigor há mais de 15 anos, quando do ajuizamento da presente ação, sem que se tivesse notícia da existência de problemas desse tipo, com relação a seu cumprimento.

Correta, pois, a decisão regional, a não merecer reparos.

No mesmo sentido, veja-se parte da fundamentação jurídica nas ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) nº 2015501-04.2016.8.26.0000 e 2030709-28.2016.8.26.0000, ambas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

ADI 2015501-04.2016.8.26.0000:

Tendo por princípio que a lei tem por objeto a normatização de relações jurídicas em caráter geral e impessoal, é de se reconhecer que a lei atacada não é invasiva da competência do Poder Executivo e nem cria encargos a este, de sorte que é mesmo de se julgar a ação improcedente, certo que não cabe o contraste da lei com norma da Lei Orgânica do Município. É expressiva a jurisprudência do E. Supremo Tribunal Federal invocada pelo douto Subprocurador-Geral de Justiça Nilo Spínola Salgado Filho em seu judicioso parecer e que serve como luva ao caso presente, cujo teor acato em sua integralidade como razão de decidir (pág.75/82).

ADI 2030709-28.2016.8.26.0000:

Como se vê, a lei em comento em nenhum momento tratou de questão relativa a direito civil ou comercial, mas tão somente cuidou de regular matéria de interesse predominantemente local e também atinente à proteção e garantia de direitos de portadores de deficiência física e pessoas com mobilidade reduzida, nos exatos limites das atribuições conferidas aos municípios pelos artigos 23, inciso II, e 30, inciso I, da Constituição Federal, o que arreda a alardeada invasão de competência federal e afronta ao preceito do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal.

(...)

Assim, não sustenta o argumento de que a matéria tratada na legislação aqui impugnada estaria inserida dentre aquelas sujeitas à iniciativa reservada do Prefeito Municipal, em frontal violação ao princípio da independência dos Poderes e, por conseguinte, aos artigos 5º, 20, inciso III, 47, inciso II, 111 e 144 da Constituição Estadual, e artigo 84, incisos II e VI, da Constituição Federal.

No caso vertente, a lei local versou acerca de tema de interesse geral da população, sem qualquer relação com matéria estritamente administrativa, afeta ao Poder Executivo, razão pela qual poderia mesmo decorrer de iniciativa parlamentar.

Nem tampouco há que se falar que a previsão legal contestada nos autos implicaria no indevido aumento de despesas do ente público local, sem a respectiva indicação da fonte de custeio, em violação ao comando contido no artigo 25 da Constituição Bandeirante, uma vez que o próprio texto legal delega à Administração estabelecer as normas técnicas necessárias ao cumprimento do disposto na lei.

Não foram encontrados precedentes no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) sobre a matéria em estudo. No entanto, considerando a existência de um precedente do Supremo Tribunal Federal e dois do Tribunal de Justiça de São Paulo no sentido da constitucionalidade de leis municipais que veiculem tal direito, é possível sustentar, no caso, que não há vício de iniciativa, pelos fundamentos acima apresentados, na mesma linha do parecer lançado ao Projeto de Lei nº 081/2019.

Recomendam-se alguns ajustes de conteúdo do projeto: a) o § 1º do art. 1º deve ser revisado para que se considere como pessoa com deficiência aquela definida no art. 2º da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015; b) o § 2º do art. 1º deve ser revisado para constar que se considera pessoa idosa aquela com idade igual ou superior a 60 anos, nos termos do Estatuto do Idoso.

3. Conclusão

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela ausência de inconstitucionalidade manifesta do Projeto de Lei nº 189/2021, tendo em vista os três precedentes da jurisprudência apresentados, na forma do já lançado parecer ao Projeto de Lei nº 081/2019, ressaltando-se a necessidade de revisão pontual do conteúdo, conforme as observações realizadas acima.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 29 de novembro de 2021.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

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29/11/2021 17:50:07
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