Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 165/2021
PROPONENTE : Ver. Ale Alves
     
PARECER : Nº 330/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Proíbe, no município de Guaíba, adoção de animais por pessoas portadora de denúncia de maus tratos a animais"

1. RelatóriO

O Vereador Ale Alves apresentou o Projeto de Lei nº 165/2021 à Câmara Municipal, que proíbe, no Município de Guaíba, a adoção de animais por pessoa que tenha contra si denúncia de maus-tratos a animais. A proposição foi encaminhada à Procuradoria para análise nos termos do art. 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO

De fato, a norma inscrita no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido –, no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como o instituto do controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

A forma federativa de Estado adotada na CF/88 implica, entre outras consequências, a distribuição de competências materiais e legislativas aos entes que a compõem, segundo o critério da predominância do interesse: as matérias de interesse geral são atribuídas à União; as de interesse regional aos Estados e ao DF; as de interesse local aos Municípios.

No que concerne às competências legislativas, a CF/88 as divide em: a) privativa (artigo 22): atende ao interesse nacional, atribuída apenas à União, com possibilidade de outorga aos Estados para legislar sobre pontos específicos, desde que por lei complementar; b) concorrente (artigo 24, caput): atende ao interesse regional, atribuída à União, para legislar sobre normas gerais, e aos Estados e ao DF, para legislar sobre normas específicas; c) exclusiva (artigo 30, I): atende ao interesse local, atribuída aos Municípios; d) suplementar (artigo 24, § 2º, e artigo 30, II): garante aos Estados suplementar a legislação federal, no que couber, bem como aos Municípios fazer o mesmo em relação às leis federais e estaduais; e) remanescente estadual (artigo 25, § 1º): aos Estados são atribuídas as competências que não sejam vedadas pela Constituição; f) remanescente distrital (artigo 32, § 1º): ao DF são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e aos Municípios.

A Constituição Federal, em matéria de proteção do meio ambiente (art. 24, VI), estabelece a competência concorrente para a União legislar sobre normas gerais (art. 24, § 1º) e para os Estados e o Distrito Federal suplementá-las (art. 24, § 2º). Os Municípios, por sua vez, sob a ótica do artigo 24 da CF/88, não estão legitimados a legislar concorrentemente sobre esse tema. Sua competência legislativa está adstrita ao previsto no art. 30 da CF/88, limitando-se, basicamente, aos assuntos de interesse local e à suplementação da legislação federal e estadual, no que couber.

No campo da competência suplementar dos Municípios, estes estão legitimados a complementar as normas editadas com base no artigo 24 da CF/88, desde que respeitados os aspectos gerais do regramento objeto da suplementação. A respeito da competência dos Municípios para legislar sobre a proteção e defesa do meio ambiente, transcreve-se a esclarecedora lição de Paulo de Bessa Antunes, um dos maiores expoentes em Direito Ambiental:

Na forma do artigo 23 da Lei Fundamental, os Municípios têm competência administrativa para defender o meio ambiente e combater a poluição. Contudo, os Municípios não estão arrolados entre as pessoas jurídicas de direito público interno encarregadas de legislar sobre meio ambiente. No entanto, seria incorreto e insensato dizer-se que os Municípios não têm competência legislativa em matéria ambiental. O artigo 30 da Constituição Federal atribui aos Municípios competência para legislar sobre: assuntos de interesse local; suplementar a legislação federal e estadual no que couber, promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. Está claro que o meio ambiente está incluído no conjunto de atribuições legislativas e administrativas municipais e, em realidade, os Municípios formam um elo fundamental na complexa cadeia de proteção ambiental. A importância dos Municípios é evidente por si mesma, pois as populações e as autoridades locais reúnem amplas condições de bem conhecer os problemas e mazelas ambientais de cada localidade, sendo certo que são as primeiras a localizar e identificar o problema. É através dos Municípios que se pode implementar o princípio ecológico de agir localmente, pensar globalmente.” (‘Direito ambiental’. 8ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, pp. 77-8).

O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu, no RE nº 586.224/SP, julgado em 5 de maio de 2015, que “O Município é competente para legislar sobre o meio ambiente, juntamente com a União e o Estado-membro/DF, no limite do seu interesse local e desde que esse regramento seja harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados (art. 24, VI, c/c o art. 30, I e II, da CF/88)”. Assim, ao menos até o momento, o entendimento predominante é pela competência legislativa dos Municípios para disporem sobre matéria ambiental, desde que respeitados os limites do seu interesse local.

No que diz respeito à iniciativa para deflagrar o processo legislativo, as hipóteses de iniciativa privativa do Poder Executivo, que poderiam limitar o poder de iniciativa dos vereadores, estão expressamente previstas na Constituição Federal, aplicadas por simetria aos Estados e Municípios. Dispõe o artigo 61, § 1º, da CF/88:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;

e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observadoo disposto no art. 84, VI;  (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

Para os fins do direito municipal, mais relevante ainda é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

No âmbito municipal, o artigo 119 da Lei Orgânica, à semelhança do artigo 60 da Constituição Estadual, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre certas matérias:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Verifica-se, no caso, que não há qualquer limitação constitucional à propositura de projeto por Vereador sobre a matéria tratada, já que, com base nos fundamentos acima expostos, não se constata qualquer hipótese de iniciativa privativa e/ou exclusiva.

Quanto à matéria de fundo, todavia, verifica-se inconstitucionalidade flagrante, a resultar na devolução do projeto ao proponente. Pela exposição de motivos, compreende-se que a proposição objetiva vedar, àqueles que tenham contra si denúncia de maus-tratos, a possibilidade de se habilitarem à adoção responsável de animais, uma vez que não teriam as condições necessárias ao exercício de toda a série de cuidados e responsabilidades que envolve a tutela de um animal doméstico.

Entretanto, a proposição é materialmente inconstitucional quando pretende vedar a aqueles que tenham denúncia – sem distinção de natureza penal ou administrativa – em andamento, ou seja, a apurações não encerradas que estejam sendo realizadas contra pessoas contra as quais há indícios de maus-tratos a animais. Ocorre que, tanto em matéria penal quanto em matéria administrativo-sancionadora, vigoram garantias constitucionais de tutela da posição dos acusados ou investigados por atos ilícitos, entre os quais está o da presunção de inocência – ou presunção de não culpabilidade –, pelo qual um indivíduo só pode ser considerado culpado no momento em que estiver legalmente comprovada a sua culpa. Em outras palavras, denúncias em andamento, seja na esfera penal, seja na administrativa, não podem resultar, por si só, na vedação ao exercício de direitos fundamentais, como do direito à propriedade e à tutela de animais domésticos, salvo em situações excepcionais determinadas pelas autoridades administrativas ou judiciais no âmbito dos próprios processos, pois investigações e demandas em andamento não significam comprovação legal de culpa.

Veja-se, nesse sentido, o que dispõe o artigo 11, 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH): “Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.” Da mesma forma, o artigo 8, 2, da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), aplicável à República Federativa do Brasil por força do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.

Na Constituição Federal de 1988, a garantia fundamental da presunção de inocência consta no art. 5º, LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. De acordo com Renato Brasileiro de Lima (Manual de Processo Penal, 7. ed., Salvador: Juspodivm, 2019, p. 45), o princípio “pode ser definido como o direito de não ser declarado culpado senão após o término do devido processo legal, durante o qual o acusado tenha se utilizado de todos os meios de prova pertinentes para a sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da credibilidade das provas apresentadas pela acusação (contraditório).

Ainda que se trate de matéria tradicionalmente discutida no âmbito das ciências penais, no atual estado da arte do Direito Administrativo também vem sendo considerada a aplicação dessas garantias processuais quando a Administração Pública esteja perquirindo a responsabilidade administrativa ou disciplinar, tanto de pessoas com vínculos especiais (servidores, empresas contratadas por licitação, alunos de escolas/universidades públicas) quanto daqueles sem relações especiais de sujeição, submetidos à disciplina do poder de polícia. Trata-se, assim, do denominado Direito Administrativo Sancionador, ramo do Direito Administrativo que estuda as dinâmicas envolvendo a sanção e a processualidade administrativa, cujas bases têm uma forte aproximação com o Direito Penal.

Para Fábio Medina Osório (Direito Administrativo Sancionador, 3. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 95), “Consiste a sanção administrativa, portanto, em um mal ou castigo, porque tem efeitos aflitivos, com alcance geral e potencialmente pro futuro, imposto pela administração pública, materialmente considerada, pelo Judiciário ou por corporações de direito público, a um administrado, jurisdicionado, agente público, pessoa física ou jurídica, sujeitos ou não a especiais relações de sujeição com o Estado, como consequência de uma conduta ilegal, tipificada em norma proibitiva, com uma finalidade repressora ou disciplinar, no âmbito de aplicação formal e material do Direito Administrativo”.

Revelando-se como um ramo do Direito Administrativo especificamente voltado à disciplina da ação punitiva da Administração Pública, tem-se, portanto, uma aproximação com as garantias processuais tradicionalmente aplicadas no Direito Penal. Nesses termos, de acordo com Lúcia Valle Figueiredo (Curso de Direito Administrativo, 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 422-423), são aplicáveis os seguintes princípios ao processo administrativo sancionador: “presunção de inocência, verdade real (que também se aplica aos processos administrativos em que haja litígio), oficialidade, in dubio pro reo, inadmissibilidade de provas obtidas por meio ilícito (aplicável aos dois tipos), retroatividade da lei mais benigna e necessidade de defesa técnica”, sem descartar-se a possibilidade de serem aplicados outros princípios, a depender da natureza e das consequências potenciais do processo ao indivíduo.

Portanto, afigura-se materialmente inconstitucional o Projeto de Lei nº 165/2021 na medida em que institui restrições a direitos fundamentais em função apenas da existência de denúncias que estejam sendo apuradas pelas autoridades competentes, o que, como já referido, é insuficiente, em regra, para ensejar a proibição da posse de animais, com exceção das medidas cautelares que eventualmente sejam impostas pelas autoridades administrativas ou judiciais nos casos concretos.

3. Conclusão

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe – PL nº 165/2021, pela caracterização de inconstitucionalidade material por afronta ao art. 5º, LVII, da CF/88.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 28 de outubro de 2021.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

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28/10/2021 11:33:44
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