PARECER JURÍDICO |
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"Inclui o conteúdo sobre cultura tradicionalista nas escolas públicas da rede municipal de ensino e dá outras providências" 1. RelatórioO Vereador Manoel Eletricista apresentou o Projeto de Lei nº 148/2021 à Câmara Municipal, objetivando incluir o conteúdo sobre cultura tradicionalista nas escolas públicas da rede municipal de ensino. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno. 2. MÉRITODe fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros. A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único). O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios. A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:
A medida que se pretende aprovar no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local, eis que o Projeto de Lei nº 148/2021 visa aprimorar a educação escolar mediante a inclusão, no estrito âmbito local, da cultura tradicionalista no ensino público municipal, o que não encontra resistência na Constituição Federal quanto à competência. Quanto à matéria de fundo, também não há qualquer óbice à proposta. Convém lembrar que o objetivo primordial do Projeto de Lei nº 148/2021 é promover a proteção dos interesses das crianças e dos adolescentes, alunos das escolas públicas municipais, por meio de educação qualificada e que envolva diferentes saberes. O artigo 227, caput, da CF/88 prevê que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” A expressão “Estado”, obviamente, traduz-se em um conceito lato sensu, abrangendo União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Mais especificamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), atendendo às diretrizes constitucionais, estabeleceu um verdadeiro conjunto de normas destinadas à proteção integral e absoluta das crianças e dos adolescentes, que passaram a ser tratadas como efetivos sujeitos de direitos. Os artigos 3º, 4º e 5º do referido Estatuto indicam, resumidamente, todos os direitos garantidos às crianças e adolescentes. Veja-se:
É perceptível, portanto, que a medida pretendida no Projeto de Lei nº 148/2021 é compatível com os interesses defendidos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90). Ocorre que o Projeto de Lei nº 148/2021, embora louvável no seu objeto, contém vício de iniciativa. O sistema constitucional brasileiro se estruturou no princípio da tripartição dos poderes, na forma do artigo 2º da CF/88, de observância obrigatória pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, tendo sido distribuídas funções típicas e atípicas aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, os quais, entre si, são independentes e harmônicos. A mesma norma que institui a separação dos poderes proíbe ingerências indevidas de um poder sobre outro, de forma a garantir a já referida harmonia, motivo pelo qual a Constituição Federal estabeleceu determinadas matérias para as quais há reserva de iniciativa ao Chefe do Poder Executivo, por dizerem respeito a questões de organização administrativa e, especialmente, que estão sob o controle e gerenciamento do titular desse poder. Na CF/88, a reserva de iniciativa está prevista no artigo 61, § 1º, repetida na CE/RS pelo artigo 60, os quais preveem os inúmeros casos em que apenas o Chefe do Poder Executivo poderá deflagrar o processo legislativo. Por serem normas restritivas, tão somente essas hipóteses são reservadas ao Executivo; os demais casos são de iniciativa concorrente, garantindo-se a legitimidade das propostas por parte de membros do Legislativo. Na Lei Orgânica Municipal, tais restrições são repetidas e detalhadas nos artigos 52 e 119, sendo de observância obrigatória na análise jurídica das proposições. Ocorre que essas normas são demasiadamente amplas e carregam conceitos genéricos (“organização administrativa”, “servidores públicos”, “criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública”, “serviços públicos”), tornando-se quase impossível, na prática, a atividade legislativa por iniciativa parlamentar para atribuir obrigações ao Poder Executivo, porque geralmente esbarram na reserva de iniciativa legitimada pelo princípio da separação dos poderes. No caso em análise, embora indiscutível o mérito, a medida acaba por incluir determinados conteúdos ao ensino público municipal, o que transpõe os limites do princípio da separação dos poderes, visto que interfere em atos de organização administrativa que cabem apenas ao Prefeito praticar, com o apoio dos órgãos que formam o sistema municipal de ensino. Nessa linha, é importante lembrar que, nos termos do artigo 61, § 1º, inc. II, alínea “b”, da CF/88, é privativa do Chefe do Executivo a iniciativa para projetos que disponham sobre organização administrativa, o mesmo se aplicando ao Estado do Rio Grande do Sul e aos seus Municípios, por força, também, do artigo 82, inc. III e VII, da CE/RS. Assim, a definição das temáticas curriculares, em âmbito local, compete ao Prefeito, com o apoio dos órgãos formadores do sistema municipal de ensino (art. 145, LOM), não cabendo ao Poder Legislativo essa tarefa, até porque depende de atos de planejamento e de organização administrativa, além de abrir margem para uma excessiva atividade legislativa, por iniciativa parlamentar, no sentido da previsão de outros assuntos que devam ser tratados como componentes curriculares no âmbito da educação municipal. Além disso, veja-se o que dispõem os artigos 52 e 119 da Lei Orgânica Municipal sobre as hipóteses de competência privativa do Prefeito:
Leia-se a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a respeito da inconstitucionalidade de lei municipal de Novo Hamburgo, de iniciativa parlamentar, que introduziu o xadrez na grade curricular da rede de ensino municipal:
Assim, embora sejam admiráveis a justificativa e os termos da proposta, o Projeto de Lei nº 148/2021 contém vício de iniciativa e afronta ao princípio da separação dos poderes, por dispor sobre matéria cuja iniciativa é reservada ao Chefe do Executivo, nos termos dos artigos 2º e 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, dos artigos 5º e 82, III e VII, da CE/RS e artigos 52, VI e X, e 119, II, da Lei Orgânica Municipal. Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no artigo 114 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba, para que, pela via política, o Prefeito implemente a medida. 3. ConclusãoDiante do exposto, a Procuradoria Jurídica orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, em razão de vício de iniciativa e afronta à separação dos poderes caracterizados com base nos arts. 2º e 61, § 1º, II, “b”, da Constituição Federal, arts. 5º e 82, III e VII, da Constituição Estadual e arts. 52, VI e X, e 119, II, da Lei Orgânica Municipal. Sugere-se a remessa de indicação ao Executivo, nos termos regimentais, para a implementação da política prevista no PL nº 148/2021, diante do seu inquestionável mérito. Guaíba, 23 de setembro de 2021. GUSTAVO DOBLER Procurador OAB/RS nº 110.114B Documento Assinado Digitalmente no padrão ICP-Brasil por:![]() 23/09/2021 15:14:41 |
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