Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 054/2024
PROPONENTE : Ver. João Caldas
     
PARECER : Nº 118/2024
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Veda a disponibilização de cardápio em meio exclusivamente digital nos estabelecimentos de comércio alimentício no Município de Guaíba"

1. Relatório:

O Vereador João Caldas (PDT) apresentou o Projeto de Lei do Legislativo nº 054/2024 à Câmara Municipal, o qual “Veda a disponibilização de cardápio em meio exclusivamente digital nos estabelecimentos de comércio alimentício no Município de Guaíba”. A proposta foi encaminhada à Procuradoria para análise nos termos do artigo 94 do Regimento Interno da Câmara Municipal.

2. Mérito:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A auto-organização dos Municípios está disciplinada, originariamente, no artigo 29, caput, da Constituição Federal, que prevê: “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos”.

O autogoverno se expressa na existência de representantes próprios dos Poderes Executivo e Legislativo em âmbito municipal – Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores –, que são eleitos diretamente pelo povo. A autoadministração e a autolegislação contemplam o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal.

A respeito da autoadministração e da autolegislação, transcreve-se o artigo 30 da Constituição Federal, que enumera algumas das competências dos Municípios:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

No mesmo sentido, a Constituição Federal em seu art. 23 estabelece ser da competência dos Municípios a proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

A disposições normativas trazidas na proposta se inserem na definição de interesse local. Isso porque o Projeto de Lei do Legislativo nº 054/2023, além de veicular matéria de relevância para o Município, não atrelada às competências privativas da União (CF, art. 22), estabelece meios de garantir e promover o direito dos consumidores e regular a atividade econômica no âmbito do município.

Além disso, a CE/RS, no artigo 13, I, já estabelece um rol de competências deferidas aos Municípios, entre as quais está a de “exercer o poder de polícia administrativa nas matérias de interesse local, tais como proteção à saúde, aí incluídas a vigilância e a fiscalização sanitárias, e proteção ao meio-ambiente, ao sossego, à higiene e à funcionalidade, bem como dispor sobre as penalidades por infração às leis e regulamentos locais.” No presente caso, a medida está inserida no âmbito das posturas municipais, cuja competência para definição é do Município.

O art. 78 do Código Tributário Nacional conceitua o poder de polícia atividade da administração pública como aquele que limita ou disciplina direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

No que diz respeito à iniciativa para deflagrar o processo legislativo, mais relevante ainda é a observância das normas previstas na Constituição Estadual, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Apenas excepcionalmente o parâmetro da constitucionalidade será a Constituição Federal, desde que se trate de normas constitucionais de reprodução obrigatória (STF, RE nº 650.898/RS). Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

  1. a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;
  2. b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;
  3. c) organização da Defensoria Pública do Estado;
  4. d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Verifica-se, no caso, que não há qualquer limitação constitucional à propositura de projeto de lei por Vereador versando sobre a matéria, tendo em vista que os dispositivos constitucionais não estabelecem a reserva de iniciativa para o tema tratado.

Quanto à matéria de fundo, também não há qualquer óbice à proposta. Convém lembrar que o objetivo primordial do Projeto de Lei do Legislativo nº 054/2024 é determinar, através da legislação local, medidas voltadas à melhoria das condições de acessibilidade dos frequentadores dos estabelecimentos que dispõe.

Cabe ressaltar que a ordem econômica na Constituição de 1988 define uma opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa, mas essa circunstância não legitima a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. O que se deve levar em conta é a harmonização dos princípios da livre iniciativa e da razoabilidade das medidas de poder de polícia, observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade em relação ao tamanho dos estabelecimentos.

Precedente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo corrobora a constitucionalidade da propositura legislativa em apreço, por ser estipulação de regra geral voltada a particulares:

Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 21383998720148260000-SP. Lei Municipal nº 7.283/2014, do Município de Guarulhos - Dispõe sobre acessibilidade nas academias para pessoas com nanismo no Município de Guarulhos. Vício de Iniciativa. Inocorrência. Estipulação de regra geral voltada aos particulares. Ausência de expressa reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo. Ação improcedente. (ADI 21383998720148260000 – São Paulo – Órgão Especial – Relator Ademir Benedito – 11/03/2015 – Votação Unânime – Voto nº 35659).

Não está configurada invasão da competência do Poder Executivo, porque a lei em comento não versa sobre matéria sujeita à iniciativa reservada sua, criando obrigações tão somente aos particulares, quando, então, prevalece a competência concorrente para se legislar sobre o assunto (art. 24, da Constituição Estadual, tal como o art. 61, da CF).

Trata-se, no caso, de exercício do Poder de Polícia da Administração Pública, cujo alvo é matéria não inserida dentre aquelas cuja iniciativa legislativa seja reservada ao Chefe do Executivo, ou mesmo privativa da Administração.

Saliente-se que a Lei Municipal em comento tem por objetivo tutelar direitos de portadores de deficiências, de acordo com o que dispõe o art. 23, II da Constituição Federal. E a questão assemelha-se às imposições por leis municipais a supermercados e shopping centers, que devem reservar número de vagas em estacionamento para deficientes, idosos e gestantes, para melhor atendimento de seus usuários.

Outrossim, o STF firmou entendimento de que o princípio da livre iniciativa não pode ser invocado para afastar regras de regulamentação do mercado:  

  1. O acórdão recorrido coaduna-se com o entendimento do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, no sentido de que “O princípio da livre iniciativa não pode ser invocado para afastar regras de regulamentação do mercado e de defesa do consumidor.(ADI 4.512, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, DJe de 17/6/2019). 7. Agravo Interno a que se nega provimento. (RE 1345825 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 06/12/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-248 DIVULG 16-12-2021 PUBLIC 17-12-2021)

Verifica-se que a Câmara Municipal de Porto Alegre aprovou proposta praticamente idêntica - PLL 653/23.

Também na ALSC tramita matéria análoga - Projeto de Lei n. 0163/2023. Naquele Legislativo, a PGE-SC posicionou-se pela inexistência de vício de inconstitucionalidade ou de ilegalidade no conteúdo da proposição em tela; [II] a Secretaria de Estado da Indústria, do Comércio e do Serviço (SICOS) opinou pela possibilidade jurídica de prosseguimento da tramitação da matéria, “eis que a temática é convergente ao interesse público” e, finalmente, [III] a Diretoria de Relações e Defesa do Consumidor do PROCON/SC, pronunciou-se favoravelmente à proposição em apreço, “haja vista que está em consonância com a legislação Federal (Lei n. 8.078-90).”

No Estado do Rio de Janeiro, já vigora a Lei Municipal nº 10.032/2023, a qual “Proíbe a disponibilização, pelos bares, restaurantes, lanchonetes, hotéis, motéis e estabelecimentos similares que comercializem bebidas, refeições ou lanches, de cardápio ou menu exclusivamente digital, no âmbito do estado do Rio de Janeiro, e dá outras providências”.

3. Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria opina pela legalidade e pela regular tramitação do Projeto de Lei do Legislativo do Legislativo nº 054/2024, por inexistirem vícios de natureza material ou formal que impeçam a sua deliberação em Plenário.

Sugere-se ao proponente que estabeleça eventual multa por descumprimento, a fim de conferir efetividade à proposta e que por tratar de polícia administrativa, que seja incluída no Código de Posturas do Município – Lei Municipal nº 1.027/1990.

É o parecer.

Guaíba, 25 de abril de 2024.

 

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador-Geral

OAB/RS 107.136

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25/04/2024 14:37:58
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