Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 040/2024
PROPONENTE : Ver. Miguel Crizel
     
PARECER : Nº 106/2024
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Estabelece a limpeza periódica e manutenção da infra-estrutura da rede pluvial em áreas de risco para enchentes e inundações no Município de Guaíba"

1. Relatório:

O Ver. Miguel Crizel (MDB) apresentou o Projeto de Lei do Legislativo nº 040/2024 à Câmara Municipal, o qual “Estabelece a limpeza periódica e manutenção da infra-estrutura da rede pluvial em áreas de risco para enchentes e inundações no Município de Guaíba”. A proposta foi encaminhada à Procuradoria Jurídica pela Presidência para análise nos termos do artigo 94 do Regimento Interno.

2. Mérito:

De fato, a norma insculpida no art. 94 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais ou ilegais (art. 94, §1º). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, §1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI) e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A própria doutrina jurídica prevê o instituto do controle de constitucionalidade político também chamado de controle preventivo, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora. A devolução será efetivada mediante despacho fundamentado da Presidência, sempre indicando o artigo constitucional, da Lei Orgânica ou Regimental violado, garantido o direito do autor de recorrer dessa decisão ao Plenário, conforme o art. 94, parágrafo único do RI.

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, estando prevista, no inciso I, a competência para legislar sobre assuntos de interesse local. A norma que se pretende editar no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local e na competência municipal, pois a proposta pretende dispor sobre regras de trânsito no âmbito local. Tal medida se insere na competência municipal e está alinhada aos objetivos previstos na Constituição Estadual Gaúcha.

 

Ocorre, todavia, que a proposta contém vício de iniciativa. A proposição esbarra no disposto no art. 61, § 1º, da CF/88, que estabelece a iniciativa privativa para a deflagração do processo legislativo, fixando as disciplinas próprias do Presidente da República, aplicáveis por simetria aos demais entes federados, entre eles o Município de Guaíba:

Art. 61 (...)

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

(...)

O conteúdo normativo do Projeto de Lei do Legislativo nº 040/2024, do Poder Legislativo, invade a iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo Municipal, prevista no aludido art. 61, § 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil, ao regulamentar serviço público que é de responsabilidade e atribuição do Executivo.

Diante disso, a alteração das regras contratuais sobre o tema não cabem ao Legislativo, mas apenas ao Executivo, enquanto esfera de poder responsável pela administração dos serviços públicos.

Não se pode esquecer, ainda, do previsto nos artigos 52 e 119 da Lei Orgânica Municipal, que, à semelhança dos citados dispositivos constitucionais, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre determinadas matérias:

Art. 52 - Compete privativamente ao Prefeito:

(...)

VI – dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei;

(...)

X – planejar e promover a execução dos serviços públicos municipais;

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Destarte, apesar de ser honrosa sob o ponto de vista material, a proposta não poderia ter sido apresentada por membro do Poder Legislativo, uma vez que a iniciativa para projetos que criem ou estruturem órgãos da Administração Pública, ou que lhe atribuam obrigações até então inexistentes, compete apenas ao Chefe do Executivo, enquanto responsável pela organização administrativa. Nesse sentido, a jurisprudência do TJRS:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. MUNICÍPIO DE PELOTAS. LEI MUNICIPAL DETERMINANDO A OBRIGAÇÃO A CRIAÇÃO DE SERVIÇO DE RECOLHIMENTO GRATUITO DE MATERIAIS EM DESUSO. VÍCIO DE INICIATIVA. INTERFERÊNCIA NA ORGANIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ARTIGOS 8º, 60, II, D, 82, III E VII, E 154, I E II, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. CRIAÇÃO DE DESPESAS SEM PREVISÃO DE DOTAÇÃO ORÇAMENTÁRIA SUFICIENTE. INCONSTITUCIONALIDADE CARACTERIZADA. Reconhecida a inconstitucionalidade de Lei Municipal originada da Câmara Municipal de Vereadores determinando a criação de serviço de recolhimento gratuito de materiais em desuso (móveis, eletrodomésticos, etc.), uma vez que é de competência privativa do Prefeito Municipal a criação de leis que disponham sobre a estruturação da Administração Pública e as atribuições de seus órgãos, nos termos dos artigos 60, II, d e 82, III e VII, da Constituição Estadual, os quais reproduzem normas contidas da Constituição Federal. Ofensa também caracterizada em relação ao artigo 154, I e II, da Constituição Estadual, porquanto a implementação do disposto na norma impugnada implica em evidente aumento de gasto por parte da Administração sem que, contudo, haja a respectiva previsão orçamentária. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70062437777, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Iris Helena Medeiros... Nogueira, Julgado em 06/04/2015).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N. 4.273/2015, DO MUNICÍPIO DE CANGUÇU, QUE INSTITUI O BANCO DE REGISTRO DE DOADORES DE SANGUE. CRIAÇÃO DE ATRIBUIÇÕES À SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE. VÍCIO DE INICIATIVA CONFIGURADO. MATÉRIA SOBRE A QUAL COMPETE AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO LEGISLAR PRIVATIVAMENTE. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES. INCONSTITUCIONALIDADE PROCLAMADA. Padece de inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, lei municipal proposta pelo Poder Legislativo que, ao instituir banco de registro de doadores de sangue, cria atribuições à Secretaria Municipal de Saúde, porquanto são de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo as leis que disponham sobre criação, estruturação e atribuições de órgãos da Administração Pública (art. 60, inc. II, alínea "d", da Constituição Estadual). Por conseguinte, também resta caracterizada ofensa ao princípio da separação e independência dos Poderes no âmbito municipal, consagrado nos arts. 8º, caput, e 10 da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70068415397, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 17/10/2016).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N.º 3.032/2010 DO MUNICÍPIO DE GRAVATAÍ/RS. CRIAÇÃO DE BANCO DE MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO, MÓVEIS E UTENSÍLIOS DOMÉSTICOS. MATÉRIA ATINENTE AO FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL. PROJETO APRESENTADO POR VEREADOR. VÍCIO FORMAL DE INICIATIVA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SIMETRIA. Sobre o processo legislativo na esfera jurídica da União, o artigo 84, inciso VI, letra "a" da Constituição Federal atribui competência privativa ao Presidente da República, para dispor sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Por simetria, a regra se aplica aos Estados e aos Municípios. Assim, por tratar de matéria atinente ao funcionamento da administração municipal - criação de banco de materiais de construção, móveis, utensílios domésticos no âmbito do Município de Gravataí - e por ter sido apresentada por iniciativa do Poder Legislativo, padece de vício formal a Lei nº 3.032/2010, do Município de Gravataí/RS. AÇÃO PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70040358459, Tribunal Pleno, TJRS, Relator: Genaro José Baroni Borges, Julgado em 23/05/2011).

É preciso destacar, por fim, a existência de inúmeros precedentes do Tribunal de Justiça declarando a inconstitucionalidade formal de leis municipais nesse sentido, quando deflagrado o processo legislativo por Vereador:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DO MUNICÍPIO DE ALEGRETE QUE ESTABELECE REGRAS SOBRE A RESERVA DE VAGAS GRATUITAS DE ESTACIONAMENTO PARA IDOSOS E DEFICIENTES. INICIATIVA PARLAMENTAR. VÍCIO DE INICIATIVA QUANTO AO REGRAMENTO DO PODER EXECUTIVO. SEPARAÇÃO DE PODERES. Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a lei de iniciativa da Câmara de Vereadores possui vício de iniciativa, ao estabelecer regras para os serviços públicos de estacionamento rotativo pago nas vias públicas municipais, cuja gestão cabe ao Poder Executivo, viola o princípio constitucional da separação dos Poderes Republicanos, que condiciona todos os entes políticos, e o Município, nas circunstâncias do caso. PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70070873567, Tribunal Pleno, TJRS, Relator: Carlos Cini Marchionatti, Julgado em 27/11/2017).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 7.648/2013, DO MUNICÍPIO DE CARAZINHO, QUE DÁ NOVA REDAÇÃO AOS ARTIGOS 2º E 4º DA LEI MUNICIPAL Nº 7.067/2009, QUE CONSOLIDA A LEGISLAÇÃO QUE INSTITUI E DISCIPLINA O ESTACIONAMENTO ROTATIVO PAGO. EMENDA ADITIVA QUE LIMITOU A VIGÊNCIA DA LEI Nº 7.648/2013 EM 06 (SEIS) MESES. VÍCIO DE ORIGEM. INICIATIVA PRIVATIVA DO PREFEITO. OFENSA AOS ARTS. 5º, 8º, 10, 60, II, D, E 82, VII, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. É inconstitucional a parte do art. 2º da Lei Municipal nº 7.648/2013 acrescentada pela Emenda Aditiva ao Projeto de Lei nº 001/2013, a qual limitou a vigência da Lei em 06 (seis) meses, por vício de iniciativa, considerando que a competência para regular matéria relativa a estacionamento rotativo pago é do Chefe do Executivo. Há, pois, ingerência do Poder Legislativo em matéria de competência exclusiva do Poder Executivo Municipal, violando o princípio constitucional da independência e harmonia dos Poderes, em ofensa ao disposto nos artigos 5º, 8º, 10, 60, II, d, e 82, VII, da Constituição Estadual. [...] (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70056182025, Tribunal Pleno, TJRS, Relator: Francisco José Moesch, Julgado em 27/01/2014)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE LAJEADO. LEI MUNICIPAL LEI Nº 10.006, DE 23 DE DEZEMBRO DE 2015. PROJETO DE LEI ORIGINÁRIO DA CÂMARA DE VEREADORES DISPONDO SOBRE O ESTACIONAMENTO ROTATIVO PAGO NAS VIAS PÚBLICAS MUNICIPAIS. MATÉRIA DE INICIATIVA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. CONFIGURADOS VÍCIO FORMAL E MATERIAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PROVIDA. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70068200468, Tribunal Pleno, TJRS, Relator: Jorge Luís Dall'Agnol, Julgado em 05/09/2016).

Assim, considerando ser exclusiva do Poder Executivo a iniciativa para definir a matéria, o PLL nº 040/2024 sofre de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa, sendo juridicamente inviável.

Sugere-se a remessa de indicação ao Executivo, nos termos regimentais.

3. Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, em razão de vício de iniciativa caracterizado com base no artigo 61, § 1º, da CF/88, nos artigos 5º, 8º, 10, 60, II, “d”, e 82, III, da CE/RS e no artigo 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

É o parecer.

Guaíba, 10 de abril de 2024.

 

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador-Geral

OAB/RS 107.136

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10/04/2024 16:00:50
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