Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 042/2024
PROPONENTE : Ver. Rosalvo Duarte
     
PARECER : Nº 103/2024
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a vacinação contra o vírus HPV em crianças e adolescentes nas unidades escolares na rede de ensino de Guaíba."

1. Relatório:

O Vereador Rosalvo Duarte (PL) apresentou o Projeto de Lei do Legislativo nº 042/2024 à Câmara Municipal, o qual “Dispõe sobre a vacinação contra o vírus HPV em crianças e adolescentes nas unidades escolares na rede de ensino de Guaíba”. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do artigo 94 do Regimento Interno.

2. Mérito:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

Quanto à matéria de fundo, também não há óbices. A Constituição Federal, no artigo 196, prevê: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” O artigo 198, por sua vez, estabelece que os serviços de saúde se desenvolvem por meio de um sistema público organizado e mantido com recursos do Poder Público, nos seguintes termos:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

Percebe-se, pois, que o Projeto de Lei do Legislativo nº 042/2024 está em consonância com o regramento constitucional a respeito do direito à saúde, especialmente consagrado no artigo 6º como direito fundamental e, como tal, possui aplicabilidade imediata, nos termos do § 1º do artigo 5º da CF.

Ocorre que a proposta, embora louvável no seu objeto, contém vício de iniciativa. Para os fins do direito municipal, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Na mesma linha, dispõe, ainda, a Lei Orgânica do Município de Guaíba sobre as hipóteses de competência privativa do Prefeito:

Art. 52 - Compete privativamente ao Prefeito:

(...)

VI – dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei;

(...)

X – planejar e promover a execução dos serviços públicos municipais;

Vale destacar que o mero fato de gerar novas despesas ao Poder Executivo não obstaculiza a tramitação de projetos de lei, desde que haja previsão do programa na lei orçamentária anual, na forma do artigo 154, I, da CE/RS e do artigo 167, I, da CF/88. Inclusive, como bem já sustentou o IGAM, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu o entendimento de que “Não usurpa a competência privativa do chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração Pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos.” (ARE nº 878.911/RJ, Relator: Min. Gilmar Mendes, publicado em 11/10/2016).

Sucede-se que, muito além de apenas criar novas despesas ao Executivo, o Projeto de Lei do Legislativo nº 042/2024 objetiva a instituição de novas tarefas específicas para a Secretaria Municipal de Saúde, bem como para a Secretaria Municipal de Educação, que consistem na implantação de medidas a serem implementadas no âmbito do programa de vacinação do Município de Guaíba, tendo sido previstas inúmeras atribuições ao referido órgão da Administração Pública, como se percebe da leitura da proposta.

Veja-se que em praticamente toda a proposta são feitas referências a obrigações que a Secretaria de Saúde deverá assumir. Todas essas providências, por se referirem à organização administrativa e à prestação de serviços públicos, só podem ser implementadas a juízo do próprio Poder Executivo, no momento em que decidir pela viabilidade e oportunidade.

Portanto, embora seja respeitável a intenção do proponente, a matéria ofende a chamada reserva de administração, insculpida no artigo 61, § 1º, da Constituição Federal e no artigo 60 da Constituição Estadual, decorrência do conteúdo nuclear do princípio da separação de poderes (CF, artigo 2º), ao dispor a respeito de serviço que, notadamente, envolve as atribuições dos órgãos da saúde, sobre o que cabe apenas ao Executivo providenciar.

Não se pode esquecer, por fim, do previsto no artigo 119 da Lei Orgânica Municipal, que, à semelhança dos citados dispositivos constitucionais, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre determinadas matérias:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Destarte, apesar de ser honrosa sob o ponto de vista material, a proposta não poderia ter sido apresentada por membro do Poder Legislativo, uma vez que a iniciativa para projetos que atribuam obrigações aos órgãos da Administração Pública cabe apenas ao Chefe do Executivo, responsável pela organização administrativa.

A propósito, destaca-se a jurisprudência:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL Nº 1.794/2009 DO MUNICÍPIO DE ARROIO DO SAL/RS. CRIAÇÃO DE OUVIDORIAS DE SAÚDE NOS POSTOS DE SAÚDE DA REDE MUNICIPAL. MATÉRIA ATINENTE AO FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL. PROJETO APRESENTADO POR VEREADOR. VÍCIO FORMAL DE INICIATIVA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SIMETRIA. Sobre o processo legislativo na esfera jurídica da União, o artigo 84, inciso VI, letra “a” da Constituição Federal atribui competência privativa ao Presidente da República, para dispor sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Por simetria, a regra se aplica aos Estados e aos Municípios. Assim, por tratar de matéria atinente ao funcionamento da administração municipal (criação de Ouvidorias de Saúde nos Postos de Saúde da Rede Municipal), e por ter sido apresentada por iniciativa do Poder Legislativo, padece de vício formal a Lei nº 1.794/2009, do Município de Arroio do Sal/RS. AÇÃO PROCEDENTE. UNÂNIME. (TJ-RS - ADI: 70032003584 RS, Relator: Genaro José Baroni Borges, Data de Julgamento: 13/12/2010, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ do dia 17/12/2010).

Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 3.705/2013, de 22 de novembro de 2013, que “Dispõe sobre a política de combate e prevenção da dengue e dá outras providências”. - Vício formal. Desvio do Poder Legislativo. A competência que disciplina a gestão administrativa é privativa do Chefe do Poder Executivo. A iniciativa exercida pelo Poder Legislativo violou o texto constitucional que consagra o Princípio da Separação dos Poderes. Criação de atribuições aos órgãos da Administração e de despesas sem dotação orçamentária. Ofensa aos artigos 5º, 47, incisos II e XIV, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. Inconstitucionalidade configurada. Precedentes. - Ação procedente.” (TJSP. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° º 2153135-76.2015.8.26.0000, de Vargem Grande do Sul, Rel. Des. Péricles Piza, data da decisão: 11/11/2015).

Ação Direta de Inconstitucionalidade. Município de Catanduva. Lei nº 6.153, de 12 de maio de 2021, que autoriza a Prefeitura Municipal de Catanduva a proceder à vacinação em coveiros. Norma de iniciativa parlamentar. Legislação que interfere na gestão Administrativa do Município, ao estabelecer prioridade de vacinação a certo grupo de pessoas (coveiros). Desrespeito ao princípio da Reserva da Administração e, como consequência, ao princípio da Separação dos Poderes. Inteligência dos artigos 5º e 47, incisos II, XI e XIX, 'a', ambos da Carta Paulista, aplicáveis ao Município, por força do artigo 144 da mesma Carta. Inconstitucionalidade declarada. Ação direta julgada procedente, com efeito ex tunc.” (TJSP; Direta de Inconstitucionalidade 2161844-90.2021.8.26.0000; Relator (a): Cristina Zucchi; Órgão Julgador: Órgão Especial; Tribunal de Justiça de São Paulo - N/A; Data do Julgamento: 16/02/2022; Data de Registro: 18/02/2022)

Nestes termos, o Município, com amparo nos artigos 196 e 200 da Constituição da República, na Lei nº 8.080/1990, e na Lei Orgânica do Município somente poderá impor, no âmbito de seu território, medidas supletivas que tenham por escopo a execução das medidas que estão contidas nas normas da União e do Estado que versam sobre a vigilância epidemiológica ou ações que tenham por finalidade o controle de doenças e de situações de agravos à saúde. 

Ressalta-se, ainda, que a Lei Federal nº 6.259, de 30 de outubro de 1975, que dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, traz as atribuições do Ministério da Saúde atinentes à elaboração de Programa Nacional de Imunizações e a definição das vacinações obrigatórias e dispõe sobre a execução do Programa de Vacinação em âmbito nacional e regional, assim prevê:

Art. 3º Cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório. Parágrafo único. As vacinações obrigatórias serão praticadas de modo sistemático e gratuito pelos órgãos e entidades públicas, bem como pelas entidades privadas, subvencionadas pelos Governos Federal, Estaduais e Municipais, em todo o território nacional.

Art. 4º O Ministério da Saúde coordenará e apoiará, técnica, material e financeiramente, a execução do programa, em âmbito nacional e regional.

§ 1º As ações relacionadas, com a execução do programa, são de responsabilidade das Secretarias de Saúde das Unidades Federadas, ou órgãos e entidades equivalentes, nas áreas dos seus respectivos territórios.

§ 2º O Ministério da Saúde poderá participar, em caráter supletivo, das ações previstas no programa e assumir sua execução, quando o interesse nacional ou situações de emergência o justifiquem.

§ 3º Ficará, em geral, a cargo do Ministério da Previdência e Assistência Social, por intermédio da Central de Medicamentos, o esquema de aquisição e distribuição de medicamentos, a ser custeado pelos órgãos federais interessados.” (...)

Art. 6º Os governos estaduais, com audiência prévia do Ministério da Saúde, poderão propor medidas legislativas complementares visando ao cumprimento das vacinações, obrigatórias por parte da população, no âmbito dos seus territórios.

Sendo assim, o Município não pode estabelecer medidas legislativas no âmbito local que inovem sobre o sistema de imunização obrigatório, devendo, como membro do Sistema Único de Saúde por força do artigo 198 da Constituição da República, apenas cumprir as diretrizes e políticas de saúde já constantes na citada norma e na Lei 8.080/1990, e na Lei Federal nº 6259/1975 sob pena de extrapolar a competência legislativa local.

3. Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, em razão de vício de iniciativa caracterizado com base no artigo 61, § 1º, da CF/88, no artigo 60, II, alínea “d”, da CE/RS e no artigo 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

É o parecer.

Guaíba, 08 de abril de 2024.

 

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador-Geral

OAB/RS nº 107.136

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08/04/2024 16:34:03
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