Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 037/2024
PROPONENTE : Ver. Miguel Crizel
     
PARECER : Nº 099/2024
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Fica instituído o Selo Autista a Bordo no Município de Guaíba"

1. Relatório:

O Vereador Miguel Crizel (UNIÃO) apresentou o Projeto de Lei do Legislativo nº 037/2024 à Câmara Municipal, o qual “Fica instituído o Selo Autista a Bordo no Município de Guaíba”. A proposição foi encaminhada a esta Procuradoria Jurídica pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno.

2. Mérito:

Preliminarmente, verifica-se que a norma inscrita no artigo 94 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade. Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido – e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 94 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer todo o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução é efetuada mediante despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 94, parágrafo único).

Quanto ao conteúdo da matéria proposta, verifica-se que pretende instituir um mecanismo para o exercício de direitos pelos portadores de Transtorno do Espectro Autista, através de Selo a ser expedido e distribuído por Secretaria Municipal. A matéria invade de modo indevido a chamada reserva de administração, constante no art. 61, § 1º, da Constituição Federal de 1988, substância central do princípio da separação de poderes inscrito no art. 2º da CF/88, ao dispor a respeito de política pública criadora de novas atribuições a órgão público ligado à estrutura do Poder Executivo, o que cabe exclusivamente ao Prefeito definir, por meio de projeto de lei da sua iniciativa privativa.

O Projeto de Lei nº 037/2024, ora em análise, vai de encontro, ainda, ao disposto no art. 60, II, “d”, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, bem como afronta o previsto no art. 82, VII, do mesmo diploma:

Art. 60 – São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

 

Art. 82 – Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e art. 10 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul):

A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental. ("Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, p. 438/439).

A proposição trata, eminentemente, de disciplina tipicamente administrativa, a qual constitui atribuição político-administrativa do Prefeito, caracterizando inconstitucionalidade material e formal. Não cabe à lei de iniciativa parlamentar estabelecer política pública instituidora de novas atribuições a Secretaria Municipal, por se tratar de matéria de competência privativa do Chefe do Executivo, na esfera de sua discricionariedade. Aliás, veja-se precedente da jurisprudência relacionado ao caso em análise:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE VACARIA/RS. LEI MUNICIPAL Nº 4.390/2019. CRIA O PROGRAMA “ALUGUEL SOCIAL” NO ÂMBITO DO MUNICÍPIO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. VÍCIO DE INICIATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL. CRIA DESPESA SEM PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA. 1. A Lei Municipal nº 4.390/2019, de iniciativa parlamentar, determina a implementação do Programa “Aluguel Social”, que consiste em prover subsídio assistencial para o pagamento de aluguel, disponibilizando acesso à moradia a famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade socioeconômica. 2. A despeito da nobre intenção do legislador, a Lei impugnada padece de vício de iniciativa, visto que a norma implica despesas e criação de atribuições para a Secretaria de Desenvolvimento Social, além de expressamente impor deveres ao Executivo Municipal. Há, portanto, violação de competência privativa do Prefeito. 3. Nessa conjuntura, também há transgressão do princípio da harmonia e independência entre os Poderes Estruturais. 4. A norma vergastada cria dispêndios para os cofres municipais sem previsão nas leis orçamentárias do Município. Por conseguinte, há, também, inconstitucionalidade material, ante o desrespeito ao planejamento orçamentário. 5. Ofensa aos arts. 8º, 10, 60, II, alínea “d”; 82, II, III, VII; 149, e 154, I e II, todos da CE/89. Precedentes deste Órgão Especial. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME.(Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70081786055, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eduardo Uhlein, Julgado em: 28-10-2019)

O Projeto de Lei nº 037/2024 apresenta, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frente à Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto às atribuições dos órgãos públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no art. 114 do Regimento Interno, para que, pela via política, o Prefeito implemente a medida veiculada, apresentando o competente projeto de lei.

Ademais, conforme as normas constitucionais de repartição de competência, observa-se que compete à União e aos Estados dispor sobre a proteção das pessoas com deficiências:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (...)

XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência;

(...)

§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. (Vide Lei nº 13.874, de 2019)

§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. (Vide Lei nº 13.874, de 2019)

§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. (Vide Lei nº 13.874, de 2019)

§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário. (Vide Lei nº 13.874, de 2019)

O artigo 5º veicula norma autorizativa, considerada inconstitucional pela jurisprudência pátria:

Considerando que o Legislativo não precisa autorizar o Executivo a executar ato de sua competência já autorizado pela Constituição, este Colendo Órgão Especial já reconheceu a inconstitucionalidade das chamadas 'leis autorizativas', por exemplo, na ADIn n° 0153008- 17.2011.8.26.0000, na qual se afirmou que lei relacionada com a organização do Município, ainda que inculque autorização, tem comando determinativo, sendo, portanto, de iniciativa do Prefeito. Também na ADIn n° 994.09.231228-7, na qual ficou declarada a inconstitucionalidade da lei, por vício de iniciativa, sob fundamento de se submeter a controle de constitucionalidade lei autorizativa que impõe determinado comportamento à administração. E ainda na ADIn n° 0068540-23.2011.8.26.0000, proclamando a inconstitucionalidade de lei que, embora dita autorizativa, veicula comando provido de força cogente, invadindo atribuição do chefe do Executivo'.

Cumpre ressaltar que as pessoas com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), são consideradas deficientes para fins de todos os direitos, e, portanto, têm garantidos os direitos previstos em lei para o grupo, incluindo o direito ao estacionamento.

3. Conclusão:

Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver à autora a proposição em epígrafe – Projeto de Lei do Legislativo nº 037/2024, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, da CF/88; arts. 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS) e de inconstitucionalidade material por afronta ao princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF/88; art. 5º da CE/RS), bem como afronta ao art. 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

É o parecer.

Guaíba, 04 de abril de 2024.

 

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador-Geral

OAB/RS nº 107.136

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04/04/2024 10:59:05
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